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Orquestras inovam na pandemia com repertórios pensados para o mundo virtual

Orquestras inovam na pandemia com repertórios pensados para o mundo virtual

Maestro Abel Rocha encomenda obras a oito compositores brasileiros de várias tendências e cria uma nova e criativa frente na produção erudita em tempos de pandemia

Publicado em 9 de setembro de 2020 às 12:07

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Maestro Abel Rocha foi diretor artístico do Teatro Municipal de São Paulo e regente titular da Orquestra Sinfônica Municipal nos anos de 2011 e 2012
Maestro Abel Rocha foi diretor artístico do Teatro Municipal de São Paulo e regente titular da Orquestra Sinfônica Municipal nos anos de 2011 e 2012. (Caio Gallucci/Divulgação)

Existe vida inteligente no reino das orquestras sinfônicas. Esta é a melhor notícia destes tempos pandêmicos em que todos nós fomos relegados à interação virtual.

Mas vamos por partes. Primeiro, a má notícia. Em geral, nossas orquestras passaram por dois estágios nos últimos seis meses: 1) atarantadas, descobriram as lives; e 2) crentes que descobriram ouro, estão simplesmente replicando as situações convencionais de concerto no mundo digital. Detalhe: não há nada mais constrangedor do que maestros e músicos agradecendo a uma sala totalmente vazia. Nada mais empobrecedor, tedioso mesmo, do que assistir a concertos e recitais com som vagabundo e "câmeras-estátuas", inertes em frente aos músicos.

A grande notícia é que, ao menos, uma orquestra realizou não um, mas dois projetos absolutamente inovadores e adequados para os tempos atuais. Nada de replicar situações de concerto. O maestro Abel Rocha, de 58 anos, entendeu rapidamente, desde março, que, para continuar se legitimando na sua comunidade e realizando um trabalho adequado ao novo normal, era necessário virar tudo do avesso. Começou fomentando a criação de um repertório pensado para o novo normal. Microestreias da Quarentena, lançado em maio, é um ovo de Colombo, tamanha a simplicidade. Rocha encomendou obras a oito compositores brasileiros de várias tendências, de Neymar Dias a Alexandre Guerra, de Leonardo Martinelli a José Guilherme Ripper, de Alexandre Lunsqui e Mauricio de Bonis a Chico Mello e João Cristal.

Detalhe: obras já pensadas, antes mesmo de chegarem ao pentagrama, que deveriam circular nas redes sociais. E mais: que os músicos tocariam separadamente, cada um em sua casa. O resultado está disponível no YouTube. "Cada obra foi escrita para quatro a seis músicos, que gravaram individualmente suas partes em suas casas", diz Rocha. "Ao todo, 40 artistas participaram do projeto." A equipe técnica trabalhou com extremo cuidado na edição e sincronização dos vídeos. "Foi um enorme desafio", diz o maestro, que chegou a gravar bases para orientar cada músico.

Ou seja, um trabalho ao mesmo tempo minucioso e monumental para pôr em pé cerca de 40 minutos de música distribuídos em 8 obras bem diversificadas. Cada uma também é apresentada pelo compositor. Não exagero em dizer que é um divisor de águas, uma lição de como a música nova deve - e pode - ser dignamente produzida e interpretada. Bingo. Acesso universal, gratuito, a qualquer tempo. Como todas as cabecinhas digitais funcionam hoje em dia.

O projeto mais revolucionário, no entanto, foi maturado e lançado há duas semanas no YouTube. "Trilogia Trancafiada" é uma série de três curta-metragens pensados para as redes sociais, entre 6 e 8 minutos cada um, assinados por Luísa Almeida e realizados com a participação dos músicos da orquestra de Santo André, sempre com direção-geral de Abel Rocha.

Conceito: expressar os sentimentos vividos pelos músicos - iguais aos que vive a população brasileira inteira - desde março, provocados pelo súbito isolamento social. Uma saga em três capítulos: Ansiedade, retratando o choque inicial e a desorientação das primeiras semanas; Adaptação, mostrando a resiliência dos músicos às novas condições de vida pessoal, familiar e profissional; e Acolhimento, em que a incerteza quanto ao retorno à normalidade se cristaliza em espera serena.

Está no texto explicativo do projeto, que conclui: "Tudo quanto aparecera cinza em Ansiedade agora surge colorido; acolher a dor também pode gerar uma abertura para enxergar o mundo com novas cores, sendo essa vivência o mote para encerrar nosso percurso".

Luísa, diz Abel Rocha, atuou como compositora, estabelecendo um conjunto de seis ações a cada músico em sua casa. Gestos como o de retirar os instrumento da caixa e montá-los; fazer a manutenção diária deles; registrar um hobby pessoal; registrar cenas de objetos marcantes na casa; e fazer vídeos de uma janela da casa sendo filmada em seu interior, mostrando a paisagem exterior. Cada músico fez isso em casa. Os vídeos, enviados para Luísa, constituíram matéria-prima dos curtas, que ora brincam com os gestos diários dos músicos com seus instrumentos, ora aplicam desenhos às performances das três obras musicais interpretadas pela orquestra. Tudo de bom gosto, do melhor nível, tanto do ponto de vista visual quanto das ótimas execuções da orquestrada comandada por Abel Rocha.

Detalhe fundamental: não se fez nenhum concerto para sala vazia. Foram escolhidas gravações audiovisuais da orquestra em temporadas passadas, em concertos com público, o antigo normal. Assim, Luísa jogou com todos esses materiais e construiu curtas muito impactantes. Ansiedade tem como trilha a Abertura Festiva, de Camargo Guarnieri; Adaptação acontece sob as sonoridades do Episódio Sinfônico de Ronaldo Miranda; e o Acolhimento rola enquanto soam as brincadeiras barrocas realizadas por Denise Garcia em sua Vivaldiana, com direito a citações de melodias conhecidas do prete rosso. Para assistir, é só acessar o site.

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