Publicado em 18 de novembro de 2019 às 20:30
Em 2017, o então pré-candidato à Presidência Jair Bolsonaro disse que visitou um quilombo onde "o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas" e que, uma vez no governo, "não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola". No mesmo ano, Marcelo D'Salete pulicou a HQ "Angola Janga" após uma pesquisa de dez anos sobre o quilombo de Palmares.>
Em 2019, a Polícia Civil de São Paulo recebeu o dobro de notificações de crimes de intolerância religiosa em relação ao ano passado -sobretudo ataques contra religiões de matriz africana. Ao mesmo tempo, Hugo Canuto lançou "Contos dos Orixás", HQ que adapta lendas do candomblé com verniz de super-herói.>
O que pode parecer coincidência não é encarado necessariamente assim pelos quadrinistas. "O contexto histórico faz as coisas tomarem o seu caminho", acredita Canuto, que publicou o quadrinho sobre os orixás após dois financiamentos coletivos.>
No primeiro, arrecadou R$ 40 mil; no segundo, ultrapassou R$ 150 mil -o que fez a HQ saltar de 60 para 120 páginas. Nelas, Canuto conta visualmente o surgimento e as lendas que rondam entidades como Iansã, Oxóssi e Oxum. >
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"Cada gesto, cada cor tem seu significado. Fui, por exemplo, estudar nos terreiros como Xangô se movimenta na dança para ilustrar como ele se move na HQ", explica.>
Ao lado de Marcelo D'Salete, o quadrinista falou sobre histórias em quadrinhos com perspectivas negras na Flica, a Festa Literária Internacional de Cachoeira, que ocorreu no mês passado na cidade histórica do Recôncavo Baiano.>
"Angola Janga" não é a única HQ de D'Salete sobre a luta de negros no Brasil colonial contra a escravidão. Se esse quadrinho surge a partir de uma pesquisa sobre Palmares, em 2014 o autor publicou "Cumbe", uma aventura sobre a batalha de negros contra a sociedade escravocrata. A revista foi traduzida nos Estados Unidos e ganhou no ano passado o Eisner, prêmio considerado o Oscar dos quadrinhos.>
"O contexto em que vivemos hoje no Brasil gera um outro nível de leitura dessas histórias, principalmente a partir de um governo baseado no culto à violência", acredita.>
Para explicar a importância de HQs como as dele e as de Canuto, D'Salete evoca o que considera uma das principais questões no Brasil desde sempre: o direito à terra. >
"É uma guerra que envolve MST, quilombolas, indígenas. O que procurei mostrar em 'Angola Janga' é que esses grupos negros desenvolveram outro modo de lidar com a terra. Uma maneira que desconsidera interesses de grandes empresários -o que não é interessante para esse governo atual", afirma o quadrinista. >
É aí, segundo ele, que está a relevância de obras de arte que trazem diferentes perspectivas. "Elas mostram o que pode ser um Brasil mais igualitário e democrático. Não só nos quadrinhos, mas também na literatura, com Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro, Lázaro Ramos", continua. >
Tanto para D'Salete quanto para Canuto, é impossível hoje calar produções que mostrem esses outros pontos de vistas porque, ao mesmo tempo em que ocorrem casos diários de racismo e de intolerância, diferentes grupos pressionam editoras, empresas e eventos por mais pluralidade.>
"Precisamos de histórias que fujam do ficou registrado como oficial. Se existe uma área da cultura brasileira que está tomando essa frente é o quadrinho", acredita Canuto.>
Mas não é apenas no Brasil. Nos Estados Unidos, principal mercado geek e de HQs, as gigantes do mercado já prestam mais do que a atenção em palavras como diversidade -e nas cifras que podem vir junto.>
Não à toa "Pantera Negra" quebrou recordes de bilheteria e foi um dos queridinhos do Oscar, o personagem negro Miles Morales virou um Homem-Aranha, e o filme da "Mulher Maravilha" se tornou símbolo do feminismo no mundo dos heróis. "Estamos tentando levar essas discussões para um público mais amplo do que o da academia", analisa D'Salete.>
*O jornalista viajou a convite da Flica>
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