O verdadeiro sucesso de 'A Mulher da Casa Abandonada'

Podcast que virou fenômeno na internet é alvo de polêmicas sobre espetacularização, mas seu verdadeiro objetivo jornalístico pode dar impulso à visibilidade e ao combate à escravidão moderna. No ES, nove pessoas foram resgatadas neste mês de julho

Publicado em 01/08/2022 às 02h01
Escravidão
Operação Resgate II flagra trabalho escravo contemporâneo em fazendas do ES. Crédito: Ascom-ES | Divulgação

Um podcast — mídia que para muitos remete ao bom e velho rádio, com conteúdo disponibilizado em áudio, já presente no ecossistema da internet desde a segunda metade dos anos 2000, mas popularizada mesmo nos últimos anos —  tornou-se um fenômeno no Brasil.

Não há números consolidados sobre a audiência de "A Mulher da Casa Abandonada", uma produção do jornalista Chico Felitti para a Folha de S. Paulo, mas o próprio veículo publicou matéria na qual mostra que o podcast é o mais ouvido nas três plataformas de streaming mais populares no país. No YouTube, passou das 300 mil visualizações. É facilmente perceptível que a reportagem sobre Margarida Bonetti, que hoje vive em uma residência "aos pandarecos" em um bairro nobre de São Paulo, virou assunto em todas as rodas. 

Margarida viveu no imóvel de Higienópolis desde que retornou, no fim dos anos 90, dos Estados Unidos, onde foi acusada, com o marido, de manter uma doméstica brasileira em condições de trabalho análogas à escravidão. O então marido dela, Renê Bonetti,  foi julgado e condenado em território norte-americano. Ficou preso até 2007. Margarida escapou ao vir para o Brasil, onde passou mais de duas décadas sem ser incomodada pela Justiça norte-americana. 

Esse é um resumo rasteiro do conteúdo do podcast, cujo efeito colateral mais notório foi a transformação da casa de Margarida em um ponto turístico, uma reação bastante despropositada dos ouvintes que colocou o próprio trabalho do jornalista no centro de intensos debates. 

Mas não há como negar o valor jornalístico da produção: o episódio mais importante da série talvez seja o quinto, "Outras Tantas Mulheres", que investiga outros casos de escravidão moderna em território nacional, deixando evidente para quem ouve que não se trata de um caso isolado. Em pleno século XXI, patrões ainda submetem mulheres e homens a situações degradantes no trabalho. O incentivo à denúncia que é feito pelo jornalista pode ajudar a mudar essa realidade que ficou muito tempo nas sombras.

Um levantamento  do Ministério Público do Trabalho (MPT)  publicado pela Folha de S.Paulo mostrou que houve aumento de 123% nas denúncias de trabalho doméstico análogo à escravidão  desde o lançamento do podcast. A média mensal passou de 7 para 16 denúncias após o dia 8 de junho, e por mais que a influência não possa ser comprovada, há pelo menos uma sinalização disso.

A escravidão moderna tem inúmeras faces, mas se baseia sobretudo na intimidação, como ameaça, detenção, violência física ou psicológica. Também são comuns os casos de escravidão por dívida, com trabalhos forçados e condições sub-humanas e insalubres de trabalho e alojamento. Com o podcast, as formas como esse tratamento servil se dá no trabalho doméstico tiveram o maior destaque, mas o aliciamento de pessoas para trabalhos forçados no meio rural ou em fábricas é lamentavelmente comum no país.

Neste mês de julho, seis órgãos públicos e 49 equipes de fiscalização realizaram a Operação Resgate II, com inspeções em 22 Estados e no Distrito Federal. Foram 338 trabalhadores em situação análoga à escravidão resgatados nessa que foi, segundo os organizadores, a maior operação conjunta desse tipo já realizada no Brasil. No Espírito Santo, foram nove pessoas em fazendas de municípios do Norte do Estado.

Vale reforçar que é um trabalho de fiscalização que já vem sendo feito nas últimas décadas no Brasil, mas é preciso firmar a consciência de que se trata de uma de nossas maiores mazelas sociais. Nesse ponto é que o podcast pode ter um impacto mais transformador, inclusive uma presença mais destacada nas agendas dos representantes eleitos. Condições de trabalho degradantes, essa "nova escravidão", só existem quando faltam oportunidades para as pessoas. Há a maldade dos que se aproveitam de um país despedaçado para lucrarem, mas um trabalhador que não teme a fome e a miséria é um trabalhador que tem mais chances de escapar desses patrões criminosos.

É irônico que um meio de comunicação tão contemporâneo possa ajudar a combater uma situação tão anacrônica, que de fato nunca deveria ter existido na história humana. Seres humanos não podem ser subjugados por outros, em nenhuma circunstância. "A Mulher da Casa Abandonada" será um sucesso realmente se, passado todo o frisson, conseguir deixar a sociedade mais atenta a isso.

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