Lei Aldir Blanc peca pela lentidão, mas pode deixar legado positivo

Primeiros a encerrar as atividades, artistas e espaços culturais ainda não receberam apoio financeiro. Mas mecanismos criados para a distribuição dos recursos devem render frutos para uma gestão cultural mais eficiente

Publicado em 02/10/2020 às 06h00
Pagamento em dinheiro
Cadastro de artistas no ES para pagamento de auxílio começa na segunda-feira (5). Crédito: Siumara Gonçalves

A Lei de Emergência Cultural, conhecida como Lei Aldir Blanc, traz o caráter de urgência no nome. Mas a pressa ficou apenas no batismo. Primeiros a encerrar as atividades com as medidas de distanciamento social, ainda em março, artistas, museus, teatros e casas de shows ainda não receberam apoio financeiro, às vésperas de se completar sete meses de paralisação. A acertada celeridade na distribuição do auxílio de R$ 600 a desempregados, autônomos e MEIs nem de longe é a mesma empenhada na distribuição dos recursos ao setor de arte e entretenimento.

Os motivos são vários. O primeiro deles é a própria demora na criação e regulamentação do dispositivo, que permite a transferência R$ 3 bilhões do governo federal para que Estados e municípios invistam em artistas, espaços culturais e projetos de fomento. A sanção presidencial veio apenas no final de junho, após pressão do Congresso. A partir daí, a morosidade gira sobre dois eixos: a pesada burocracia imposta para a operacionalização da lei e a histórica negligência com a área cultural no Brasil.

Em linhas gerais, o trâmite exige a elaboração e votação de projetos de lei nas assembleias de cada Estado, a apresentação de planos de ação por cada um dos 5.570 municípios do país e a realização do cadastramento de artistas e instituições. A título de exemplo, até o dia 30 de setembro, apenas 46 cidades capixabas haviam inscrito os tais planos na plataforma do governo, requisito para o repasse dos recursos. O número é similar à média nacional, em que quase metade ainda não realizou a inscrição.

Vencida a etapa em que o dinheiro cai na conta de Estados e municípios, vem a tarefa de distribuir o bolo. No Espírito Santo, o cadastro de artistas e espaços ainda nem teve início. Começará na próxima segunda-feira (5), para os primeiros, e no dia 11 de outubro, para as instituições culturais. Depois, as informações ainda passarão por cruzamento de dados antes de, finalmente, chegar aos beneficiados. O governo do Estado prevê que 6,9 mil artistas receberão as parcelas do auxílio, mas esse número é apenas uma estimativa, já que, marcado pela informalidade, o setor é parcamente mapeado. Basta lembrar que em março o Ministério da Economia projetava que o auxílio emergencial beneficiaria entre 15 e 20 milhões de pessoas, número que saltou para quase 68 milhões na prática. Também previstos na lei, editais e chamamentos públicos ainda não foram divulgados no Espírito Santo.

Esse cenário não é exclusivo do Estado. Em todo o Brasil, o setor que foi o primeiro a parar e o último a retornar aguarda o tão esperado socorro. Não se trata de menosprezar o trabalho de parlamentares federais e estaduais, servidores de todas as esferas e membros da sociedade civil que se dedicaram ao longos dos últimos meses à elaboração, regulamentação e implementação da lei. Graças a eles é que em breve os recursos finalmente chegarão a quem tanto precisa. Mas é inegável que a morosidade não é bem-vinda. Estados e municípios têm até o final do ano para aplicar os recursos e prestar contas. Caso contrário, eles devem retornar ao Tesouro.

O velho descaso com a cultura cobra seu preço. A implementação da Lei Aldir Blanc impôs uma série de desafios técnicos, jurídicos e administrativos para os quais a maioria das administrações não estava preparada, não por culpa dos atuais gestores, mas pela ausência de instrumentos. As pastas de cultura, que normalmente têm à disposição recursos escassos, receberam com a Lei de Emergência a tarefa de administrar verbas que nunca viram na vida. E sem conhecimento do terreno.

O Espírito Santo, mais uma vez, pode ajudar a ilustrar o panorama nacional. A Aldir Blanc dá prioridade no repasse a cidades que tenham Fundo de Cultura. Mas até junho, quando a lei foi sancionada, apenas 15 dos 78 municípios capixabas tinham o instrumento, que permite uma gestão mais eficiente, transparente e democrática. Somente 26 possuíam conselhos de cultura, fórum que certamente daria um gás à elaboração de estratégias. Incluído na Constituição em 2012, o Sistema Nacional de Cultura auxiliaria na descentralização dos recursos, como exige agora a Lei Aldir Blanc, mas até hoje não foi regulamentado.

A missão de primeira hora é socorrer o setor, que não tem data para retomar as atividades. Passada a tempestade, será hora de aproveitar o embalo para que a Lei Aldir Blanc deixe um legado. Os primeiros sinais já começam a ser sentidos. O Espírito Santo já dobrou o número de cidades que instituíram fundos municipais de cultura, por exemplo, e a quantidade de conselhos pulou para 34. São os primeiros passos para o cumprimento efetivo dos deveres constitucionais de fomento e acesso à cultura, em moldes mais democráticos e sustentáveis, que livrem o país da dependência das leis de incentivo fiscal. Como compôs o mestre que batizou a lei, a esperança, equilibrista, sabe que o show de todo artista tem que continuar.

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