Publicado em 22 de outubro de 2020 às 17:35
Ainda em meio à pandemia da Covid-19, os dados mais recentes da economia brasileira mostram uma retomada heterogênea não só em termos setoriais, mas também regionais -com destaque para os efeitos do auxílio emergencial na recuperação do Norte e do Nordeste. >
Na avaliação de economistas ouvidos pela reportagem, são claros os sinais de que o auxílio inflou a economia dessas regiões na pandemia, principalmente o comércio, à medida em que ocorria a flexibilização das medidas de isolamento social.>
O IBGE mostra, por exemplo, que em 15 dos 16 estados do Norte e Nordeste o comércio explodiu e já ultrapassou com sobras o nível pré-pandemia.>
O economista Thiago Moraes Moreira, consultor em planejamento e professor da pós-graduação do Ibmec, destaca que, desagregando o país em dois subgrupos, é possível ver que a expansão do comércio varejista, de abril a agosto, foi de 51% no consolidado Norte e Nordeste, mas no Centro-Sul-Sudeste foi de 27%.>
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À exceção da Bahia, os estados nordestinos com indústria pesquisada pela IBGE também registraram crescimento em meio à pandemia. O Amazonas já recuperou, com sobras, as perdas do período. O mesmo ocorreu com Pará, Ceará e Pernambuco.>
Nos demais estados do país, retomada semelhante só foi vista em Minas Gerais e Goiás.>
O setor de serviços, por outro lado, segue penando para retomar o nível pré-crise, assolado pela dificuldade dos serviços prestados às famílias. A ausência de uma vacina para Covid-19 ainda limita o deslocamento das pessoas para bares, restaurantes, hotéis e viagens de turismo.>
Em todo o país, apenas o Amazonas recuperou o patamar visto antes da pandemia. O estado havia sido um dos primeiros a sofrer com o coronavírus, com recorde de mortes e chegando a ser um dos epicentros no país, com maior taxa de incidência da doença.>
O professor de economia Luiz Roberto Coelho, da Ufam (Universidade Federal do Amazonas), afirma que o auxílio emergencial foi essencial nas regiões Norte e Nordeste para garantir o básico para as famílias que não tinham trabalho certo e ficaram sem opção de ganhos no pico do isolamento social.>
"Com o dinheiro na mão, as pessoas pagam as contas e recuperam o consumo, principalmente de alimentos", diz.>
Mas R$ 600 pode ser um valor alto para o baixo padrão de vida visto em muitas dessas regiões. Moreira, do Ibmec, lembra que a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, de 2018, mostrava que 41% da população da região Norte vivia com menos de R$ 420 por mês. No Nordeste, essa fatia representava 44% da população.>
No restante do país, não passavam de 16% os que estavam nessa faixa de renda.>
A Tendências Consultoria aponta que o auxílio teve um grande impacto nessas camadas mais pobres. Fez a massa de rendimentos dos nortistas e nordestinos crescer em ritmo bem mais acelerado do que em outras regiões. A estimativa é que a alta seja de 16,7% no Norte e 13,6% no Nordeste, caindo para 2,1% no Sul, 2% no Centro-Oeste e 1,8% no Sudeste.>
"A massa de renda total [considerando renda do trabalho, Previdência, transferências e outras rendas] dessas regiões Norte e Nordeste deve crescer dois dígitos este ano com a injeção dos recursos do auxílio, mais que compensando a perda da massa de renda do trabalho", observa Camila Saito, economista da Tendências.>
De acordo com o IBGE, essa renda extra provida pelo auxílio de R$ 600 pode ter contribuído para o crescimento das vendas no comércio. Nesse caso, parte do benefício teria ajudado as famílias a bancar a compra de utensílios domésticos e a renovação da infraestrutura da casa com pequenas obras, por exemplo.>
A percepção é reforçada quando se cruzam dados de liberação do benefício e desempenho da economia local.>
No Amapá, estado que percentualmente foi o mais beneficiado pelo auxílio emergencial, 71,4% dos domicílios receberam o benefício em agosto. Neste mesmo mês, o varejo local teve um desempenho recorde. As vendas ficaram 44% acima do demonstrado em fevereiro, último mês antes da pandemia levar o país ao distanciamento social.>
No Maranhão, segundo estado com maior adesão percentual ao auxílio, com 65,5% dos domicílios cadastrados, o comércio cresceu 26,7% entre fevereiro e agosto, mesmo diante da queda inicial de março e abril, com o fechamento de lojas, bares e restaurantes.>
O Pará, terceiro mais beneficiado -64,5% das residências contaram com o benefício-, viu o setor de varejo superar as perdas na pandemia em 18%.>
O professor de economia Écio Costa, da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), estudou o efeito do auxílio emergencial e identificou resultados impressionantes. Algumas famílias que tinham renda muito baixa passaram a receber até R$ 1,8 mil com o benefício, já que a mulher se declarava chefe da casa e ainda tinha algum parceiro, que também recebia os R$ 600.>
De uma hora para outra, isso possibilitou a compra de alimentos, itens de higiene pessoal e material de construção civil, antes inacessíveis, com impactos importantes na economia de várias cidades.>
Costa cita como exemplo Santarém Novo, no Pará. "O dono de um açougue da cidade abriu uma farmácia,>
pois ganhou muito dinheiro vendendo carne às famílias que não consumiam carne bovina antes. Muitas das habitações mais humildes do município passaram por reformas. Tudo isso fruto do auxílio", afirma.>
Apesar de reconhecer os benefícios sociais do programa, Otto Nogami, economista do Insper, pergunta se não houve problemas no desenho do auxílio, uma vez ele que gerou artificialismos na economia.>
"Existe uma questão discutível: o auxílio foi criado para auxiliar pessoas sem renda", afirma. "Mas acabamos percebendo que um grande número de beneficiados usou o recurso para reformar casa, trocar eletrônicos, e assim por diante -e esse movimento fez com que o comércio se recuperasse mais forte em alguns lugares onde esse movimento pode não persistir", afirma.>
Os líderes em desemprego do Brasil, por exemplo, são Bahia e Sergipe, com 19,9% e 19,8% de desocupados. Em ambos os estados, o varejo já recuperou o nível pré-crise.>
Para especialistas, o quadro de forte recuperação tende a mudar com a redução do auxílio para R$ 300, valor que passou a valer no final de setembro. O primeiro sinal apareceu na taxa de desocupação.>
O número de brasileiros em busca de uma vaga aumentou em 700 mil entre a terceira e quarta semanas de setembro, totalizando 14 milhões de desempregados. O crescimento foi puxado, principalmente, pelo Norte e Nordeste.>
Os dados são da Pnad Covid e foram divulgados nesta sexta (16). Somadas as taxas, houve uma alta de 12,3% no contingente de desempregados nessas regiões -quase sete vezes o observado no Sul, Sudeste e Centro-Oeste. No conjunto, essas três regiões registraram uma alta de 1,8% no número de desempregados.>
Em 2021, com o fim dos repasses, essas regiões deverão sofrer com uma queda importante da massa de renda total.>
"Mesmo considerando uma Renda Cidadã, essas regiões devem sofrer mais para retomar a massa de renda do trabalho, também por conta do congelamento do salário dos servidores públicos, tendo em vista que a participação do funcionalismo na massa de renda do trabalho nessas regiões é maior que a média nacional," diz Saito.>
De acordo com a consultoria, os brasileiros devem fechar 2020 com a massa de rendimentos em alta de 4,5%, mas 2021 deve ser um ano de "ressaca" com o fim dos repasses emergenciais, levando a uma queda de 4,3% do indicador.>
Segundo o professor Roberto Lopes, da UESB (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia), o aumento do desemprego no Nordeste reflete, em parte, o fim da colheita de alguns produtos, mas também uma perda de dinamismo com a redução do auxílio.>
"Os mais pobres têm propensão a gastar no comércio local. Uma grande fatia desses recursos foram para produtos regionais, que ajudam na cadeia de produção local.">
A Eletros, entidade que representa os fabricantes de eletrodomésticos, defende a continuidade do auxílio emergencial em 2021 para evitar o que considera um previsível baque econômico e social.>
"A crise sanitária e econômica não acaba em 31 de dezembro", afirma José Jorge do Nascimento Junior, presidente da Eletros. "Vamos continuar, infelizmente, com o vírus circulando pelas cidades, com muitos casos ainda e risco de uma segunda onda, como já acontece na Europa.">
Moreira, do Ibmec, reforça que o governo precisa pensar em alternativas para evitar que o fim do auxílio aprofunde as desigualdades . "Regiões mais pobres vão sofrer", afirma.>
Observando o que ocorre no extremo oposto do ranking de liberação do auxílio, é possível perceber o outro lado da recuperação desigual e seus riscos. Santa Catarina, que menos benefícios recebeu no país, vive uma retomada gradual e sustentada por premissas sociais mais vantajosas.>
No estado, 90,5% dos empregados do setor privado têm carteira assinada e a taxa de informalidade é a menor do país, de 25,8%. No segundo trimestre, apresentava também a menor taxa de desemprego do Brasil: de 6,9%, cerca de metade da média nacional, então em 13,3%.>
As vendas do varejo estavam em agosto 16% acima do nível de fevereiro, o dobro da média nacional, e a indústria estava 9% acima. Apenas os serviços ainda ficaram 16% abaixo do nível pré-crise. Mas Paulo Zoldan, economista da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Econômico Sustentável, traça um cenário positivo.>
"Os hotéis já estão com bom nível de reserva, isso deve dar uma azeitada no comércio e no setor de hospedagem e alimentação, que são os mais afetados na conta de serviços.">
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