O amplo direito de ação é uma das mais belas expressões da democracia. Nenhum direito é devidamente garantido se o cidadão não puder reivindicá-lo quando lhe for tolhido ou ameaçado. A Constituição Federal de 1988 fez questão de colocá-lo no coração das garantias pétreas, imutáveis.
Mas, como qualquer outro direito, seu exercício deve ser moderado. Abusos precisam ser fortemente coibidos. Afinal, no conceito mais primário de liberdade, o limite do seu espaço é o começo do espaço do outro.
O problema é que esse eixo minimamente moral tem se diluído nos dias de hoje. Na Justiça do Trabalho, juízes relatam diuturnamente abusos gritantes cometidos por partes e advogados, movidos pela ânsia de ganhar alguns trocados — sempre às custas do outro e, invariavelmente, do Estado.
E os exemplos beiram o escatológico: não raro, um trabalhador ajuíza ação contra o empregador pedindo indenização por danos morais em razão de acidente de trânsito ocorrido no trajeto para o trabalho. Onde estaria a culpa do patrão? Nem se tenta alegar. Em outro caso, famoso nas redes, um trabalhador pediu rescisão indireta e indenização porque, no dia do aniversário, embora tenha ganhado bolo, os colegas não cantaram “parabéns” ao bendito. Chorei.
Mas os abusos não são monopólio dos trabalhadores. Muitas grandes empresas deliberadamente acumulam passivos trabalhistas, descumprem a lei, deixam de pagar direitos básicos, e, anos depois, tentam barganhar com o já exaurido trabalhador.
Em outro extremo, empregadores incentivam seus empregados a buscar a Justiça para homologar rescisões, usando indevidamente o procedimento de “homologação de transação judicial”. Transformam o Poder Judiciário em mero sindicato homologador, obtendo eficácia liberatória (leia-se: renúncia do direito de ação) sem pagar nada além das verbas rescisórias incontroversas.
Talvez o auge do absurdo esteja na moda recente: o pedido de “reversão” da demissão (o malfadado “pedido” de demissão) em rescisão indireta. Em resumo, o trabalhador se arrepende de ter se demitido, sob a alegação de que havia vício no contrato que justificaria outra forma de rescisão.
Ora, o ex-empregado tomou uma decisão livre, ainda que ruim, e pretende agora que a Justiça a corrija. Ocorre que decisões ruins também fazem parte da liberdade. Uma vez tomadas, sem coação, já produziram seus efeitos, já era, assuma seus atos. Querer que o Judiciário reescreva o passado é como uma criança que, após se entupir de sorvete antes do almoço, exige outro porque não ficou satisfeita.
E tudo isso ganhou ainda mais combustível desde que o STF praticamente esvaziou a sucumbência — uma das conquistas da reforma trabalhista de 2017. Ao concluir que trabalhadores pobres que perdem o processo não precisam pagar honorários advocatícios à parte vencedora, o Tribunal abriu espaço para a propagação das “aventuras jurídicas”, do ˜se colar, colou”. Multiplicaram-se pedidos mirabolantes de indenização por danos morais e adicionais de insalubridade sem qualquer lastro, por exemplo.
Mas não custa lembrar: processos são caros. Em 2024, a Justiça do Trabalho no Brasil recebeu 3.599.940 novos casos. Com um gasto anual de aproximadamente R$ 24,7 bilhões, cada processo novo custou, numa conta de padaria, R$ 6.861. Ou seja, aquele processo em que o trabalhador exigiu indenização porque os colegas não lhe cantaram “parabéns” custou quase R$ 7 mil aos cofres públicos. Sem contar o custo da defesa da empresa.
Agora pense comigo: em média, cada Vara do Trabalho no Brasil recebe 2.288 novos processos por ano. Suponhamos, chutando baixo, que apenas 20% sejam abusivos ou absurdos. Isso significa que cada Vara gastou mais de R$ 3,1 milhões apenas com bizarrices. Só essas lides abusivas custam cerca de quatro vezes mais do que manter dois juízes em atividade naquela unidade judiciária.
O problema, portanto, não é gasto com pessoal, é a falta de compromisso ético. É esquecer que o direito de ação deve ser usado com moderação. Esse padrão descompromissado acaba por ofuscar a advocacia séria, que segue atuando de forma responsável e essencial ao sistema de Justiça. É abandonar a hermenêutica, a ética, o respeito à Justiça e ao Estado Democrático. Esse mesmo Estado que levou anos — e não pouca luta — para garantir o direito de ação e a liberdade do cidadão. Vamos botar isso tudo a perder por alguns trocados?
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