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Há 28 anos, prefeito tomava posse à força com grupo armado em São Mateus

Há 28 anos, prefeito tomava posse à força com grupo armado em São Mateus

Em 1992, Amocim Leite, candidato a prefeito mais votado de São Mateus, ignorava a Justiça e com dezenas de homens armados invadia a prefeitura da cidade

Publicado em 27 de dezembro de 2020 às 06:01

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Amocim Leite durante a invasão da prefeitura, em 1992
Amocim Leite (ao centro) durante a invasão da prefeitura de São Mateus em 1992 . (Gildo Loyola/AG)

Situação impensável hoje, a Prefeitura de São Mateus foi invadida por um grupo armado com carabinas, revólveres, fuzis, gasolina, coquetéis molotov e até dinamite em dezembro de 1992. O grupo era liderado pelo candidato a prefeito mais votado na eleição daquele ano, Amocim Leite (PTB). Negro, pobre e analfabeto, ele se tornou um dos prefeitos mais folclóricos da cidade. Foi eleito três vezes e cassado duas vezes. O único mandato que terminou foi o último, iniciado em 1993, justamente esse que foi iniciado com ele tomando posse à força, enquanto a Justiça determinava que adversário dele é quem deveria ser diplomado.

Na segunda-feira (28), faz exatamente 28 anos da "invasão da Prefeitura de São Mateus", um dos momentos mais marcantes da carreira política de Amocim Leite, que dominou a política local durante 23 anos, entre 1973, quando se elegeu prefeito pela primeira vez, a 1996 quando deixou o cargo. O episódio chamou a atenção de todo o país e foi exibido em reportagem do Jornal Nacional, da TV Globo, na época. 

Para entender como a política local chegou a um ponto tão, digamos, extremo, é preciso entender quem era Amocim. Nascido em 1927, em uma São Mateus praticamente rural, que sobrevivia isolada de Vitória e mantinha maior relação comercial com o Sul da Bahia, ele cresceu no interior e, antes de entrar na política, foi morar na cidade, trabalhando no porto.

Amocim começou a se tornar alguém conhecido nos bailes dos anos 1940, nos quais tocava sanfona. Nos eventos, conheceu sua esposa, Dona Otília, uma descendente de italianos, que precisou fugir com ele para que conseguissem se casar. Juntos, eles iniciaram um comércio no Centro de São Mateus.

A ORIGEM DE AMOCIM

Neto de índios e de negros que haviam sido escravizados, Amocim é descrito por seu biógrafo, o historiador Eliezer Nardoto como um brasileiro nato, por ter o perfil familiar e econômico característico de boa parte dos brasileiros daquele período. Nardoto é escritor do livro “Com ódio, não. Amocim”, um trocadilho (Amocim = Amor, sim) utilizado pelo próprio ex-prefeito em suas campanhas eleitorais.

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Ele tinha como padrinho político o então vereador de São Mateus Nicanor Motta (PMDB), que viu nele potencial para conseguir votos entre os mais pobres. Logo, Amocim se candidatou e foi eleito vereador, no final dos anos 50. Ele era de uma origem muito humilde e mal sabia desenhar o próprio nome. Mas sabia liderar, foi assim que se elegeu prefeito em 1973”

Eliezer Nardoto
Escritor e historiador
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Naquela época, há menos de 100 anos da abolição da escravatura, havia uma intensa segregação racial na cidade, que é considerada uma das maiores populações negras do Espírito Santo. O Clube Social de São Mateus, por exemplo, que ficava em uma área nobre da cidade e recebia bailes da elite da época, não tolerava a entrada de negros. Amocim foi o primeiro a entrar na sede do clube, como prefeito eleito, já que tradicionalmente, eram ali que aconteciam as cerimônias de posse.

Em seu primeiro mandato, Amocim priorizou os moradores das classes mais baixas do campo, construindo estradas e escolas nestas áreas. Segundo Nardoto, naquela época era comum que políticos falassem para produtores rurais mandarem seus filhos para a cidade, onde arranjavam emprego na prefeitura. Trabalhando, estes jovens conseguiam estudar e se formar.

"Por não ter muita instrução, Amocim não entendia como funcionava as coisas. Se ele queria fazer algo, ninguém tirava da cabeça dele. Não adiantava dizer que era ilegal, que precisava da aprovação dos vereadores, ele achava que o prefeito era um dono da cidade. Havia falta de controle também e muita gente que se aproveitava dele para se beneficiar dentro da prefeitura. Eram gestões atrapalhadas, mas ele amava a cidade, queria fazer algo para melhorar o município", conta Nardoto.

Por conta desta maneira não convencional de governar, em 1977, a seis meses de terminar o mandato, Amocim foi cassado pela Câmara por corrupção e ficou impedido de disputar as eleições seguintes. Ele voltou à prefeitura na eleição de 1982, mais uma vez eleito. Novamente, os mesmos problemas de relacionamento com a Câmara voltaram a criar uma tensão entre Executivo e Legislativo. Em 1985, ele passou por um novo processo de cassação, acusado de enriquecimento ilícito por ter doado terras para familiares. Assessor de imprensa de Amocim em 1992, ex-vereador de São Mateus e historiador, Maciel de Aguiar, lembra que o racismo também era um fator que criava uma certa animosidade contra o prefeito.

Em 1985, Amocim Leite foi cassado por corrupção pela segunda vez(Arquivo AG)

"Pelo o que a gente ouvia na época, havia, sim, coisas absurdas na gestão, mas o que o levou a ser cassado era o racismo mesmo. As elites não aceitavam um cara negro, pobre e analfabeto sendo prefeito. Para falar a verdade, o próprio Amocim entrava nesse jogo. Ele gostava desse discurso de ser ele contra as elites. Para mim, ele não gostava do poder, ele gostava da disputa política. Durante a campanha eleitoral, ele crescia, mas durante o mandato ele desaparecia. Era um tédio para ele ter que governar", opina.

Folclórico, Amocim Leite também alimentava lendas na cidade. Uma delas dizia que o prefeito, em viagem aos Estados Unidos, quis traduzir para os americanos seu nome e se apresentava como “I love yes milk” (Amo sim leite). A história nunca foi desmentida por ele.

A ELEIÇÃO DE 1992 E A INVASÃO DA PREFEITURA

Em 1992, o principal adversário de Amocim na eleição era Wallas Batista (PMDB), que tinha sido seu vice em 1982, mas que rompeu com ele e foi favorável a sua cassação em 1985. Foi o peemedebista que impugnou a candidatura do ex-prefeito na Justiça Eleitoral, durante a campanha. Mesmo com sua candidatura sub júdice, Amocim foi o mais votado com 11.650 votos. Wallas ficou em segundo, com 8.064.

O Tribunal Regional Eleitoral (TRE-ES) considerou a candidatura de Amocim ilegal, já que suas contas de quando foi prefeito foram rejeitadas pelo Tribunal de Contas do Espírito Santo (TCE-ES). A diplomação do prefeito, que já tinha sido feita, foi anulada. A Justiça Eleitoral reconheceu Wallas como prefeito eleito. Amocim apelou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Enquanto a resposta não vinha, ele espalhava na cidade que tomaria posse no dia 1º, com carros de som que convidavam os moradores para a celebração.

Até uma "passeata pela legalidade", pedindo o reconhecimento de Amocim como prefeito, foi feita na cidade. No dia 28 de dezembro, a quatro dias da posse, Amocim junto com dezenas de homens armados invadiu na prefeitura e o Sindicato Rural de São Mateus, que ficava no prédio da frente. Em entrevista à TV Gazeta, Amocim disse que se não fosse para tomar posse, era melhor que saísse morto da prefeitura.

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Eu ganhei a eleição, ganhei no Tribunal e vou perder a disputa? Então é melhor sendo morto, porque aí assim acaba, né?

Amocim Leite, em 1992
Então prefeito eleito de São Mateus
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Nardoto conta que a Polícia Militar chegou a receber ordens para enfrentar o grupo, mas se recusaram a entrar na prefeitura. A oposição a Amocim tentava convencer o prefeito em exercício, Pedro Alves (PDT), a pedir à Justiça uma reintegração de posse, mas Alves dizia que o grupo não o incomodava.

"Desta vez, Amocim tinha o apoio da classe política, o governador era Albuíno Azeredo que ficava neutro na história, apesar dos pedidos para que ele intervisse. O clamor popular era realmente para que ele fosse o prefeito. O TSE deu uma liminar e ele governou boa parte do mandato com essa decisão", conta o escritor.

Amocim terminou seu mandato, pela primeira vez, em 1996. Em 1998, chegou a tentar ser deputado estadual, mas ficou apenas como suplente. Ele se aposentou e viveu até 2011, quando morreu, por complicações por conta da diabetes e do mal de Alzheimer.

"Ele não foi o melhor prefeito de São Mateus, mas também não foi o pior. O povoamento da ilha de Guriri, por exemplo, é uma iniciativa dele. Lá, era um terreno da prefeitura que ele saía oferecendo lotes em todos os lugares que ía. Também ajudou muitas pessoas do campo. Pelos críticos, sua gestão é lembrada pela pouca transparência e falta de profissionalismo, mas foi uma figura importante para a história de São Mateus", analisa Nardoto.

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