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Em guerra civil, ES teve dezenas de mortos e duas capitais

Em guerra civil, ES teve dezenas de mortos e duas capitais

Em plena Primeira Guerra Mundial, Espírito Santo viveu 33 dias de conflitos, com tiroteios e mortes em 12 cidades. Estado passou o período com dois governadores autoproclamados, duas capitais e duas Assembleias

Publicado em 23 de fevereiro de 2020 às 19:57

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Praça entre a antiga Assembleia Legislativa (ao fundo) e o Palácio Anchieta durante um evento político em 1912: local foi palco de batalha durante a revolta. (Arquivo Público do Espírito Santo)

Em 1916, o mundo assistia à destruição da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que ao seu fim deixou um saldo de 10 milhões de mortos. Paralelamente às disputas na Europa, mas não totalmente isolado delas, o Espírito Santo também vivia um clima de conflito bélico. Durante 33 dias, o Estado teve duas capitais, uma em Vitória e outra em Colatina, duas Assembleias Legislativas e dois governadores autoproclamados. Cidades foram sitiadas, igrejas viraram quartéis generais, coronéis e jagunços se dividiram em dois grupos.

Há registros de batalhas em Alegre, Cachoeiro de Itapemirim, Itapemirim, Afonso Cláudio, Colatina, Santa Teresa, Viana, Itaguaçu, Rio Novo do Sul, Serra, Vitória e Guarapari. No maior conflito político armado capixaba, o saldo foi de ao menos 22 mortos (telegramas registram outras mortes, porém sem quantificá-las) e quase mil pessoas que tiveram que deixar o Estado até a negociação de uma anistia.

De um lado, após uma eleição marcada por desconfianças, jeronimistas reivindicavam a vitória do senador Bernadino Monteiro, irmão de Jerônimo Monteiro que àquela época era o político mais influente do Espírito Santo. De outro, a oposição a Jerônimo indicava que José Gomes Pinheiro Júnior, um fazendeiro rompido com os Monteiro em Itapemirim, é quem havia vencido o pleito para o comando do Palácio Anchieta.

O coronel Alexandre Calmon, conhecido como Xandoca, era vice de Pinheiro Júnior e foi quem acabou levando a fama da revolta que se daria em seguida.  Foi o vice quem coordenou a parte militar do conflito, enquanto o cabeça da chapa se articulava com políticos nacionais.

Após 100 anos do conflito, telegramas trocados entre o presidente da República da época, Wenceslau Braz, e pronunciamentos de deputados no Congresso Nacional, revelados pelo historiador e ex-vereador de Vitória Namy Chequer, mostram que a batalha foi mais sangrenta do que se imaginava.

Como na época não existia Justiça Eleitoral, a contagem dos votos para decidir quem seria o presidente do Estado, como o cargo de governador era chamado na época, ficou sob a responsabilidade da Câmara dos Deputados, no Rio de Janeiro. Wenceslau Braz entrou na disputa ao lado da oposição. Enquanto uma das maiores lideranças de Minas Gerais, Francisco Sales, que dispunha de grande influência no Congresso, aliou-se aos jeronimistas.

Por fim, em uma trama de traições e de jogo de interesses nacionais, venceu Jerônimo Monteiro, que manteve sua influência por meio do irmão, Bernadino, que assumiu o Estado. Os dois romperiam anos mais tarde, em 1920, em um novo conflito armado, que transformou o Palácio Anchieta, literalmente, em praça de guerra, com direito a tiroteios e barricadas instaladas.

Jerônimo Monteiro (com uma cartola na mão) ao lado do irmão, Dom Fernando Monteiro, que era arcebispo de Vitória. (Arquivo Público do Espírito Santo)

A FORÇA DOS SOUZA MONTEIRO

Em uma época em que prevalecia a política de coronéis e o voto de cabresto, Jerônimo Monteiro foi a principal referência política de 1908, quando se elegeu governador, até 1920, quando rompeu com Bernadino. A família Monteiro Souza se alternaria no poder até 1930, quando Getúlio Vargas iniciou o Estado Novo e passou a nomear interventores para os Estados. Com tanto poder acumulado, Jerônimo Monteiro fez, naturalmente, muitos inimigos.

"A Revolta de Xandoca, em 1916, foi o grande conflito entre a oposição e os Monteiro. Foi um divisor de águas, uma espécie de vitória definitiva que o fez manter influência por tanto tempo", disse Namy.

Wenceslau Braz assina, no Palácio do Catete, o decreto que colocou o Brasil na 1ª Guerra Mundial: conflito gerou crise fiscal, que contribuiu para estourar a revolta no ES. (Biblioteca Nacional)

A OPOSIÇÃO APOIADA PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA

O presidente da República Wenceslau Braz foi o principal apoiador da oposição, antes e durante a Revolta de Xandoca. Presidindo o país durante a Grande Guerra, como era chamada até então, entre 1914 e 1918, Braz precisou fazer um grande ajuste fiscal. Mesmo com a queda na arrecadação, se viu obrigado a pagar empréstimos do Espírito Santo a bancos franceses, já que o governo capixaba não estava honrando as prestações.

Irritado com Jerônimo Monteiro por conta da dívida, o presidente passou a apoiar os oposicionistas, dando-lhes espaço nas empresas públicas federais em todo o Espírito Santo, em especial os Correios, construindo uma base sólida de influência que os permitiram estourar com a revolta.

Igreja de Nossa Senhora da Penha, em Alegre: local virou quartel general de jeronimistas. (Acervo IBGE)

ESTOPIM: A INVASÃO DE ALEGRE

As eleições de 1916 foram realizadas em março, com duas chapas, a de Bernadino Monteiro e a de Pinheiro Júnior, que tinha Alexandre Calmon, o Xandoca, como vice. Era o primeiro pleito após uma reforma eleitoral em que, resumidamente, colocava os mais votados da eleição do Legislativo anterior para organizarem a votação. Isso gerou uma série de denúncias de irregularidades que, por fim, acabou dividindo a Assembleia em duas.

A oposição organizou sua Junta Eleitoral e reconheceu Pinheiro Júnior como o mais votado, ao passo que os parlamentares jeronimistas reconheceram Bernadino vencedor. Ficou a cargo do Congresso Nacional decidir o vencedor.

Prefeitura de Alegre: local foi base da tropa oposicionista durante a revolta. (Acervo IBGE)

A batalha partiu para o confronto militar quando aliados de Pinheiro Júnior tomaram a Câmara de Alegre, naquela época uma vila importante para os Monteiro, e reconheceu o opositor como vencedor do pleito. A estratégia era demonstrar reconhecimento de lideranças locais de que Pinheiro Júnior havia vencido as eleições.

Em seus últimos dias de mandato, o governador Marcondes de Souza enviou 50 soldados de Vitória para retomar Alegre para os jeronimistas. Sem ter onde se instalar, já que os oposicionistas tomaram os prédios públicos, os militares escolheram a Igreja de Nossa Senhora da Penha, estrategicamente posicionada no alto da vila, para instalar seu quartel general.

A primeira batalha durou de 16 de abril a 23 de maio, quando, cercados, os oposicionistas e centenas de famílias fugiram de trem para Carangola, em Minas Gerais.

Palácio Anchieta: fachada do Palácio ficou cravada de balas, após oposição tentar tomá-lo. (Arquivo Público)

CAPITAL SEM LUZ: A TENTATIVA DE INVADIR O ANCHIETA

No dia 22 de maio, véspera do fim do mandato de Marcondes de Souza, o conflito chegou à Capital. Pinheiro Júnior foi até Vitória e se hospedou em um hotel no Centro. No dia 23, estava planejado um ato político da oposição na cidade. Contudo, no meio da noite, a energia elétrica da ilha foi cortada e um intenso tiroteio iniciou-se na frente do local onde a oposição estava instalada. Não se sabe até hoje quem cortou a luz.

A oposição aproveitou o cenário para tentar tomar o Palácio Anchieta, que ficou cravado de balas, mas foi afugentada pela polícia. No dia seguinte, Bernadino tomou posse em Vitória, ao mesmo tempo que Pinheiro Júnior, que tinha partido para o Noroeste, também se declarou presidente do Estado, que teria sede em Colatina.

Afonso Cláudio: cidade viveu a batalha mais sangrenta da Revolta de Xandoca, com ao menos 22 mortos e centenas de feridos. (Acervo IBGE)

DIA D: A BATALHA DE AFONSO CLÁUDIO

Se a batalha de Stalingrado (1942-1943) e o ataque dos aliados na Normândia (1944) são considerados divisores de águas da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o "Dia D" da Revolta de Xandoca foi a batalha de Afonso Cláudio, que terminou com 22 mortos, incluindo um deputado estadual, e centenas de feridos, de ambos os lados.

"Foi a batalha mais sangrenta", contou Namy. O presidente da Câmara do município, coronel Seraphim Tibúrcio da Costa, tomou a prefeitura da cidade no dia 23 de maio. Bernadino, recém empossado, enviou um forte contingente de policiais para Afonso Cláudio, liderados pelo próprio tio, o capitão da Polícia Militar Ramiro Martins.

"Quase toda a tropa da PM do Espírito Santo foi para a cidade", relatou Namy Chequer.  Em pronunciamento na Câmara, pinheiristas acusaram Ramiro Martins de anistiar prisioneiros que aceitassem lutar ao lado dos Monteiro.

Jornal Tribuna do Leste, de Manhuaçu, em reportagem sobre o coronel Seraphim Tibúrcio, um dos responsáveis pela sangrenta batalha de Afonso Cláudio. (Reprodução/Prefeitura de Manhuaçu)

Os planos dos jeronimistas eram atacar Boa Família, hoje município de Itaguaçu, última fronteira antes de chegar em Colatina. Naquele período, Pinheiro Júnior já estava no Rio de Janeiro, articulando-se com o governo federal, enquanto Xandoca comandava a sede oposicionista.

Ciente do plano, o presidente da Câmara de Boa Família disse, em telegrama para o Rio de Janeiro, que Xandoca sabia da ação bernardinista e que havia enviado um forte contingente armado para a cidade para "o encontro com o inimigo" e que a oposição responsabilizaria "o Dr. Bernardino Monteiro pelo já inevitável derramamento de sangue". Bernadino recuou, em um compromisso com o Senado, e decidiu esperar o desfecho no Congresso, esfriando o conflito.

Câmara velha de Colatina (prédio de dois andares ao fundo), em 1907: local foi sede do governo de Pinheiro Júnior e Xandoca. (Reprodução/Ifes de Colatina)

A TRAIÇÃO

Se Bernadino, em vantagem, apostava na diplomacia para dar fim ao conflito e iniciar, de fato seu governo, Xandoca queria acirrar a disputa. Mandou contrabandear do Rio de Janeiro um carregamento de armas e munições. Seriam levados de navio até Regência, na foz do Rio Doce, revólveres, fuzis Mauser e até uma metralhadora.

Contudo, uma reviravolta se deu nos bastidores por parte dos mineiros no governo federal. Wenceslau brigava internamente para eleger seu aliado e líder na Câmara, o deputado Antônio Carlos de Andrada, como presidente do Estado de Minas Gerais. Enfrentava dura disputa interna com o senador mineiro Francisco Sales, que tinha a maioria do Partido Republicano Mineiro.

Fuzil Mauser: armamento que era esperado por Xandoca em Colatina, em 1916. (Wikicommuns)

Sales era forte aliado de Jerônimo Monteiro, a quem era colega no Congresso. Ele então propôs um acordo ao presidente da República. "O presidente deixaria de apoiar a oposição de Xandoca e Pinheiro Júnior e, em troca, Francisco apoiaria Andrada em Minas Gerais. Foi uma traição", explicou Namy.

Quando Xandoca foi até Regência receber o carregamento que daria fôlego a sua revolta, encontrou nas caixas pedaços de madeiras, tijolos e areia. Ameaçado, ele e "boa parte da Vila de Colatina", como escreveu Namy, fugiu para Minas Gerais. Em 17 de agosto, a Câmara, enfim, votou e, por 108 a 15, reconheceu Bernardino governador.

"A revolta de Xandoca foi o momento em que Jerônimo Monteiro viveu seu auge de influência política no Espírito Santo e no Congresso Nacional também. Em quatro anos, contudo, as coisas mudaram. Com a oposição enfraquecida, os Monteiro passaram a disputar entre si, culminando no conflito de 1920, entre Jerônimo e Bernadino", contou a historiadora Nara Saletto.

Os quase mil revoltosos que fugiram do Espírito Santo receberam anistia. Pinheiro Júnior ainda manteve sua oposição frente aos Monteiro durante alguns anos e, mais tarde, aliou-se a Bernardino, no conflito entre ele e Jerônimo. "Já Xandoca só voltou a Colatina anos mais tarde, para vender suas propriedades e passou seus últimos dias no Rio de Janeiro", lembrou Namy Chequer.

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