Publicado em 5 de março de 2020 às 15:31
A fotógrafa Bianca Aparecida Casadei, 24, está tão acostumada com outros evangélicos julgando seu feminismo que até apelido tem para essa turma: "Porteiros do céu".>
São pessoas, diz, que se acham no direito de barrar outras que não considerem aptas a dividir o mesmo banco da igreja. "O mais educado é gente curiosa tentando entender como conciliar a fé e tal, mas há muito de 'vocês são hereges', 'vão para o inferno'.">
A recepção no outro campo não fica muito atrás também. Chamar de falsa feminista é uma das reações mais leves, diz sobre o que ouve de progressistas resistentes a aceitar que, para ela, uma coisa não anula a outra: dá, sim, para ser evangélica e lutar pelos direitos das mulheres.>
"Como diz o ditado, é muito cacique para pouca tribo", afirma.>
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Bianca Aparecida Casadei
FotógrafaÉ de muitas a luta para que crença e ativismo deixem de ser vistos como água e azeite. Parte desse grupo se reúne em páginas virtuais como a Feministas Cristãs, que junta 5.200 mulheres no Facebook e da qual Bianca é uma das administradoras.>
Ali discutem de assédio sexual nas igrejas ao Jesus com corpo de mulher que a Mangueira apresentou no Carnaval. A legenda "se esquivando do fanatismo religioso" acompanha uma foto de dois boxeadores. Outra imagem mostra o "T" da sigla LGBT como uma cruz tombada.>
Quando uma participante compartilha reportagem sobre um projeto de lei aprovado em Utah (estado americano de maioria mórmon) para descriminalizar a poligamia, outra lamenta: "Péssimo, pois é poligamia para homens religiosos. Reduz os direitos das esposas, economicamente vulneráveis nessas comunidades".>
Elas sabem que são minoria no segmento e também nas cercanias progressistas. Pesquisa Datafolha divulgada em abril de 2019 mostra que 32% das evangélicas se dizem feministas, ante 40% das católicas e 57% entre mulheres que não têm religião.>
Um texto publicado originalmente por um site americano cristão dá uma boa síntese sobre a má vontade entre evangélicos com o movimento.>
"A maioria das feministas não gostam muito do desígnio de Deus para os gêneros", diz o escrito replicado por projetos evangelizadores como o pró-abstinência sexual Eu Escolhi Esperar. "Não gostam da ideia de Eva ter sido criada como uma auxiliadora de Adão. Simplesmente não gostam dessas coisas.">
Defesa do direito ao aborto ("homicídio do bebê") e "libertação completa de limites sexuais e morais" são outras bandeiras associadas ao feminismo e que seriam inaceitáveis para uma vida em cristandade.>
Grandes igrejas também torcem o nariz para a causa, como na fala de Cristiane Cardoso transcrita no site da Universal, liderada por seu pai, o bispo Edir Macedo. Nossa singularidade como mulheres tem sido ofuscada pelas filosofias do feminismo e pela imoralidade que preenche todos os aspectos de nossa cultura".>
À frente do Godllywood, Cristiane diz que esse projeto da igreja voltado a mulheres "foi feito para ser um refúgio das atitudes negativas e também um lugar onde a verdadeira feminilidade pode crescer através do ensinamento baseado nos mandamentos bíblicos".>
Damares Alves, ministra de Mulher, Família e Direitos Humanos é pastora e declarou-se feminista em entrevista ao Estado de S. Paulo. Às "feministas que me criticam tanto", aconselhou: "Poderiam usar o meu exemplo na luta delas. Sou uma mulher que veio lá de baixo, não tinha nem sapato para ir à escola e hoje é uma ministra", disse em 2019.>
Mas feministas cristãs não costumam se ver espelhadas na ministra. Entre os vídeos de Damares que resgastam, está um dela num culto de 2015: "Sabem por que [feministas] não gostam de homem? Porque são feias e nós somos lindas".>
Para a teóloga Priscilla Ribeiro, "algumas pessoas entendem o termo 'feminista' de maneira equivocada, como se ele invocasse ódio aos homens, não a igualdade entre os gêneros". E "não só homens, mas também mulheres já me silenciaram por defender pautas históricas do movimento", diz a fiel da Igreja Cristã Carioca.>
Fundadora da EIG (Evangélicas pela Igualdade de Gênero), Valéria Vilhena, 49, sente o preconceito partir tanto das igrejas quanto da esquerda. "A pergunta que mais ouvimos: como assim, feministas e na religião do opressor?">
"Mas penso que as feministas, e os progressistas em geral, devem sempre lembrar que a religião é central na vida de muitas mulheres. Para nós, a Bíblia nos ajuda a resgatar a capacidade de indignação. Então, estigmatizar é cair na mesma armadilha do desconhecimento, inclusive histórico.">
Muitas feministas eram cristãs, lembra Vilhena. "Uma das histórias que mais amo é a de Sojourner Truth, negra, pentecostal. Em 1851, a pastores que discutiam direitos das mulheres, conclamou: 'Pari 13 filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão. [...] Ninguém a não ser Jesus me ouviu. Se a primeira mulher que Deus fez foi forte o bastante para virar o mundo de cabeça para baixo, todas estas mulheres juntas aqui devem ser capazes de consertá-lo'.">
A sanitarista Monique Rodrigues, 38, diz que a ponte entre Bíblia e feminismo sempre existiu. "Vejo Jesus Cristo de Nazaré que, fazendo frente à cultura de seu tempo, relacionou-se de forma horizontal com mulheres, como a mulher samaritana.">
Ao contrário das outras, ela diz não se sentir discriminada pela esquerda, pois "as críticas se direcionam a uma igreja hegemônica que, infelizmente, existe como a antítese de Cristo. Mas é importante pontuar que não só na ala evangélica, mas em todas profissões de fé, existem grupos que se contrapõem ao que está posto, e eles precisam ter seus lugares de fala preservados nos meios progressistas".>
Também não vale revestir o feminismo só com "capa esquerdista", diz a estudante Renata Silva, 21, da Assembleia de Deus. "A agenda foi sequestrada pela esquerda. Pra mim, é a grande cagada do feminismo, porque aliena várias mulheres que poderíamos agregar.">
Ela mesma, autodeclarada conservadora, se vê como exceção. "Falar em direito da mulher engloba várias coisas. Tipo, eu posso discordar do aborto, e discordo, mas lutar com unhas e dentes pela Lei Maria da Penha. E unhas com esmalte, tá?" (O dela é rosa.)>
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