Tragédia da Covid-19 nas periferias mostra que pandemia não é democrática

Em muitos casos, a opção de cumprir o isolamento é impossibilitada pela urgente necessidade das pessoas trabalharem. Assim, o risco eleva-se à medida que pioram as condições de trabalho e reduz-se a renda

  • Réia Sílvia Gonçalves Pereira e Deivison Souza Cruz
Publicado em 06/05/2020 às 17h00
Atualizado em 06/05/2020 às 17h00
Data: 31/05/2019 - ES - Vila Velha - Ronaldo Santana, morador de Barramares, entrevistado sobre rede de esgoto aberta no bairro - Editoria: Cidades - Foto: Vitor Jubini - GZ
Esgoto em Barramares. Crédito: Vitor Jubini

A propagação da Covid-19 nas periferias das cidades do Espírito Santo pode representar uma tragédia. Dados demonstram que a agressividade da doença é mais intensa nos bairros populares, gerando um percentual de mortes maior, quando comparado ao que os bairros das camadas médias e altas. As razões para alta letalidade estão nas próprias dinâmicas de circulação, na incidência maior de outras enfermidades  — como a dengue e a tuberculose  — além da maior dificuldade de obtenção de atendimento médico. Para se evitar o cenário de catástrofe são necessárias políticas públicas que levem em conta a especificidade dos contextos populares.

Sábado, dia 3 de abril, bairro Jardim Tropical, periferia da Serra. O uso de máscaras por alguns moradores que caminhavam nas ruas era o único indício que o Brasil e o Espírito Santo atravessam uma epidemia viral, de grande poder de contágio. A intensa circulação nas ruas e o comércio aberto denunciam que as medidas de isolamento social no Estado falharam. Sobre a preocupação com a epidemia, a opinião de uma das moradoras é emblemática: “Está nas mãos de Deus”. Como em Jardim Tropical, em localidades de Vila VelhaCariacica e Vitória os relatos que atestam a movimentação de pessoas foi um fato comum.

No Estado, os dados demonstram que os casos de Covid-19 ainda são mais numerosos em bairros das camadas médias, notadamente a Praia da Costa e em Jardim Camburi. Contudo, a doença avança em bairros populares como Feu Rosa, Vila Nova de Colares, Alto Lage e Ataíde. Seja em Jardim Tropical, seja em Nova Rosa da Penha, São Pedro, Terra Vermelha. Assim, de Nova York às favelas do Rio de Janeiro, São Paulo e Espírito Santo, a epidemia a apresenta a mesma dinâmica: começa nos bairros das camadas médias, se alastra nos bairros pobres.

O cenário é assustador, principalmente ao se comparar com São Paulo e Rio de Janeiro, cidades que são o epicentro da doença. Em tais cidades, o movimento de propagação do vírus encontra similaridades, ou seja, a propagação da doença nos contextos populares apresenta na maior letalidade. Continuando com o exemplo de São Paulo, na favela de Paraisópolis morrem dez mais pessoas por Covid-19 do que no abastado bairro dos Jardins.

Os motivos para tal distorção são tristemente evidentes. Uma epidemia não é democrática. Atinge mais fortemente aqueles que não têm acesso ao saneamento básico, à alimentação de qualidade e à salubridade. Em muitos casos, a opção de cumprir o isolamento é impossibilitada pela urgente necessidade das pessoas trabalharem. Assim, o risco eleva-se à medida que pioram as condições de trabalho e reduz-se a renda. E onde são menores os acessos aos serviços públicos.

Há quem aceite tais mortes evitáveis como fatalidades e as tornem invisíveis. Mas o fato é que é necessário impedir o futuro que se avizinha. Primeiramente, são necessárias políticas que respeitem a especificidades dos bairros populares, nos quais a sociabilidade é exercida nas calçadas, nas praças, nas vielas.

Em segundo lugar, as unidades de saúde devem promover a testagem local em massa de modo a reduzir a subnotificação. Por fim, o poder público deve dialogar com lideranças comunitárias e comércio local. Líderes religiosos também devem ser chamados ao diálogo e à responsabilidade comum pelos poderes públicos.

O perigo da Covid-19 nas periferias se intensifica devido a décadas de uma atuação estatal que se fez em um movimento de ausências e presenças, como definem as antropólogas Veena Das e Deborah Poole. A ação do Estado nos espaços marginais se mostra ora bélica, por meio da violência policial, ora ausente, como demonstram os dados referentes à falta de saneamento.

Nesse movimento de presença e ausência, a relação com Estado se mostra sinuosa. No momento de emergência sanitária como o que vivemos hoje é hora de o Estado olhar para as pessoas que moram na periferia com igual respeito com que olha para seus concidadãos mais abastados, ou seja, com o diálogo para a promoção e ações de saúde necessárias à proteção da saúde e da vida.

A autora é jornalista e cientista Social, especialista em Políticas Sociais e mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo. Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora.  O colaborador é  cientista social e doutorando em ciências Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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