Dia 30 de setembro celebra-se a moqueca em nosso Estado. A data foi escolhida em referência ao aniversário do jornalista e escritor Cacau Monjardim, autor da célebre frase “moqueca é capixaba, o resto é peixada”. Conta-se que Monjardim teria cunhado a expressão que hoje integra o vocabulário capixaba em viagem à Bahia, lá pelos idos dos anos 1970, ao provar a iguaria do estado vizinho.
A frase ganhou tal peso que reverbera até hoje na cultura do Espírito Santo, sendo mais lembrada do que a própria data em que se celebra a moqueca. Se não foi o dito que tornou o prato querido pelos capixabas, ele, de alguma maneira, tornou-se uma espécie de hino de valorização da culinária local. De modo simples e certeiro, sintetizou nosso anseio coletivo pelo reconhecimento da autenticidade da moqueca, como símbolo de orgulho e pertencimento.
Tanto é assim que, toda vez que se convida alguém de fora para o Espírito Santo, o convite vem acompanhado da proposta de degustar um prato de moqueca capixaba. Mais propriamente de moqueca. Porque, para o nascido ou criado em terras capixabas, dizer “moqueca capixaba” é uma redundância, daquelas como “subir para cima” ou “descer para baixo”. A frase de Monjardim já se tornou corrente entre os locais e é repetida com fartura: "moqueca é capixaba, o resto é peixada".
Alteridade no prato e na cultura
Acreditamos que na Bahia — para citar o estado visitado por Monjardim — o pensamento seja próximo ou quase o mesmo. A moqueca baiana, para lá, é a verdadeira moqueca, com dendê e tudo, e ser chamada de peixada por gente de cá certamente não abala essa convicção.
Há territorialismos e disputas que, como neste exemplo, em nada empobrecem o diálogo entre culturas. A provocação aqui atua como tempero de confluências culturais, ao estilo do mencionado por Antônio Bispo dos Santos, no livro “A terra dá, a terra quer”. Moqueca e peixada coexistem e são degustadas. Gostar de uma não significa negar a outra: ao fim, são as opções do cardápio que aumentam e o paladar agradece.
Identidade, identitarismo e sabores regionais
Essas provocações e convites gastronômicos falam de orgulho e identificação com traços marcantes de cada cultura local. Talvez nem seja o prato favorito de muitos capixabas, mas o convite a quem nos visita é sempre o mesmo. Apesar disso, não há aqui qualquer imposição gastronômica, tampouco outra forma de controle de uma identidade cultural fixa. Para ser capixaba a pessoa não é obrigada a gostar de moqueca. E quem nos visita tem a liberdade de aceitar ou não o convite aos sabores da culinária regional.
No Espírito Santo, cada um come o que quer: de comidas típicas a clássicos regionais, passando até mesmo por um belo hambúrguer, ao estilo fastfood. Afinal, se identificar não quer dizer repartir gostos idênticos, mas reconhecer-se ao se relacionar com os outros, naquilo em que somos ou não semelhantes.
É justamente aqui que entra a crítica contemporânea ao identitarismo. Como afirma Douglas Barros, no livro “O que é Identitarismo”, o sufixo “ismo” que se agrega à identidade atua como um movimento forçado de controle social e identificação, formando uma figura imaginária, nada menos abstrata do que um personagem fictício, daqueles de novela. Seria como exigir que todo capixaba gostasse de comer moqueca, para ser aceito por seus conterrâneos e poder compartilhar de nossos valores locais.
Singularidade e a moqueca como metáfora do comum
Michael Hardt e Antonio Negri, em “Bem Estar Comum”, propõem uma alternativa: substituir a visão identitária por uma teoria que seja focada na singularidade, preservando as diferenças mediante a formulação de estratégias de organização política da multiplicidade de subjetividades constituída na figura da multidão.
Segundo esses autores, a multidão é a ferramenta social capaz de desenvolver lutas de liberação das próprias amarras de imposições identitárias. As pessoas podem compartilhar e defender valores em comum sem perder seus traços particulares que as tornam seres humanos únicos.
Traduzindo para o nosso tema: a moqueca é símbolo de convivência entre o particular e o coletivo. Sua receita nos remete a antigos hábitos culinários dos povos originários, à panela de barro — patrimônio imaterial capixaba — e a momentos afetivos do nosso cotidiano. Ela evoca traços autênticos da cozinha local e da herança cultural do povo capixaba, mas mantém-se aberta ao diálogo com o gosto e o paladar individual de cada um de nós.
Assim, a moqueca pode ser compreendida como metáfora do comum, onde identidade e singularidade se expressam na partilha cotidiana de fazeres e saberes abertos a valores locais e extraterritoriais.
Afinal, o que todos desejamos não é ter os mesmos gostos culinários, mas, sim, poder nos enxergar dentro de uma cultura compartilhada espelhada por signos, por vezes, tão simples quanto a própria receita da típica moqueca — a nossa — ou mesmo das “outras”, que, como dizia Monjardim, ao fim e ao cabo, são, puramente, peixada.
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