Autor(a) Convidado(a)
É advogado e professor da FDV

Legalização da caça esportiva: do dano ambiental à normalização da barbárie

É cada vez mais forte o coro dos que clamam por uma ampliação da proteção dos animais. Dos que deploram o abandono, os maus-tratos, os trabalhos extenuantes, as mutilações “estéticas”, os abates cruéis. O quão fora de contexto é legalizar a morte?

  • Israel Domingos Jorio É advogado e professor da FDV
Publicado em 20/06/2022 às 14h36
Caçador
Caça esportiva: projeto de lei foi retirado de pauta. Crédito: Pixabay

O Projeto de Lei 5.544/20 se destina à regulamentação da caça esportiva em território nacional. A autoria é do deputado federal Nilson Stainsack e a justificativa do projeto repousa, basicamente, no suposto aumento da proteção ambiental a partir da legalização de uma prática que, de modo informal e clandestino, acontece às fartas no Brasil. O PL foi pautado para a sessão do último dia 8 e só essa inclusão já suscitou intensas reações negativas. O projeto acabou retirado da pauta da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável na Câmara (CMADS).

Antes de dizer por que o projeto é execrável sob qualquer ótica que se queira lançar, é preciso discordar das críticas e censuras dirigidas à votação, em si. Não é possível filtrar projetos de lei para deixar passar apenas aqueles que agradam a maioria. É preciso lembrar que estamos em um país democrático, e que os debates políticos podem e devem se desenvolver sobre todo e qualquer tipo de assunto, por mais polêmico e impopular que seja.

As propostas de alteração legislativa, desde que não firam as cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, da Constituição Federal), são sempre válidas. Daí a importância de escolher bem os representantes políticos. A eles se confia a importante tarefa de rejeitar ou aprovar as propostas conforme entendam que desatendem ou satisfazem os direitos e interesses dos eleitores.

Quanto ao específico PL 5.544/20, começamos dizendo que é inconstitucional, porque contraria o disposto no art. 225 da Constituição Federal, em que não apenas se assegura o direito das pessoas a um meio ambiente equilibrado (caput), como se proíbe tanto a extinção quanto a crueldade contra os animais (inciso VII).

E nem se diga que a exceção às “manifestações culturais” pode salvar o projeto. Além de a caça esportiva não se enquadrar no conceito, a próprio enunciado que contém a ressalva (§ 7º) exige que se “assegure o bem-estar dos animais envolvidos”. Difícil assegurar algum tipo de bem-estar em uma atividade cujo próprio objetivo é a destruição da vida do animal.

A notória inconstitucionalidade do projeto, no entanto, não é o aspecto que mais chama a atenção. Esse é um juízo puramente técnico. O que realmente dispara um verdadeiro alarme social é a frontal oposição da iniciativa em relação a valores tão ampla e solidamente compartilhados pela sociedade brasileira e por grande parte da comunidade global.

É cada vez mais forte o coro dos que clamam por uma ampliação da proteção dos animais. Dos que deploram o abandono, os maus-tratos, os trabalhos extenuantes, os confinamentos, as mutilações “estéticas”, os abates cruéis. O quão fora de contexto está o projeto de lei em questão?

Estamos muito longe de um ponto ideal, é claro. Ainda convivemos com práticas cruéis, que “normalizamos” ou das quais acabamos nos tornando dependentes. É por isso que há uma dose de verdade na fala de quem acusa de hipocrisia os defensores de animais que comem churrasco. Os amantes de cães e gatos que não se importam com bois e galinhas. Alguma dúvida de que o abate para consumo acontece em proporções claramente desnecessárias e por meios inquietantemente dolorosos? Alguma dúvida sobre as condições de vida sofríveis de um boi confinado para engorda, no “corredor da morte”? De uma leitoa constantemente inseminada para garantir a máxima lucratividade por meio de uma procriação ininterrupta? De um cavalo mal alimentado que traciona uma carroça de sol a sol, ou de uma galinha que passa toda a sua vida adulta ingerindo hormônios e pondo ovos em um cubículo equilátero de 25 cm?

Esses são males dos quais, ainda, não conseguimos nos livrar. Mas o que devemos fazer? Desistir, “chutar o balde” e permitir, logo, todo tipo de atrocidade? Ou buscar, sempre, um aprimoramento possível, evitando o evitável, proibindo os excessos mais escandalosos e as crueldades desnecessárias? Eis a questão: o que pode ser mais desnecessário do que matar por esporte?

Vivemos em um ambiente político e em um momento histórico-cultural de maior valorização da biodiversidade, da vida e do próprio bem-estar dos animais, e um deputado federal pretende, na terceira década do século XXI... legalizar a caça esportiva? Entenda-se bem: estamos falando de matar por prazer. De matar por pura diversão.

É essa inversão de valores que assusta. Será que não estamos instituindo a barbárie, ao naturalizar e normalizar a matança inútil? Será que não estamos dessensibilizando, ainda mais, as pessoas a respeito da dor e do sofrimento dos animais? Que tipo de mensagem se passa quando se legaliza a prática de destruir a vida de outro ser vivo por prazer ou diversão? De que forma a ideia de que “matar é bom, divertido, prazeroso” pode ser assimilada pelas pessoas em uma sociedade já tão tristemente marcada por atos de brutalidade e violência entre seres humanos?

E quais seriam as justificativas para um projeto assim? Considerando que é bem difícil crer que seu autor e seus apoiadores desconheçam as críticas lançadas, é de se supor que existam boas razões práticas para sua propositura. Infelizmente, não há. A fundamentação do projeto não é só incoerente. É maliciosa.

A liberação da caça esportiva ajuda a preservar a natureza, porque desestimulará a caça clandestina? Ora, se o governo não consegue controlar e coibir a caça clandestina, conseguirá fiscalizar a caça esportiva? Não serão dois os problemas, ao invés de um só – controlar a caça esportiva e a caça clandestina? E o pior: em que outro tema legislativo se usa esse raciocínio, de que a liberação diminuirá os danos? Defenderia o autor desse sofrível projeto que a regulamentação do consumo recreativo de drogas é o melhor caminho para combater o tráfico ilícito? Ou que a descriminalização ou ampliação das hipóteses de aborto legal aumentará a proteção da vida intrauterina? Não estamos afirmando que esses raciocínios sejam absurdos. Dizemos, apenas, que não os que imaginamos sendo defendidos pelos idealizadores e apoiadores do PL 5.544/20.

Um projeto assim precisa ser retumbantemente rejeitado. Pensando no planeta, na natureza, no meio ambiente, na biodiversidade e nas gerações futuras. Pelo bem dos animais, que já sofrem demais, com dor e com medo, para que sejam transformados em brinquedinhos de seres que matam para saciar um prazer mórbido. E pelo bem da própria sociedade, que deve nutrir valores e sentimentos construtivos, compatíveis com os nobres objetivos da nossa República.

Medo e dor são estados de aflição que devem despertar compaixão e provocar a busca de maneiras menos cruéis de convívio e exploração dos animais. Eis que o PL 5.544/20 vem, a toda velocidade, na contramão, afastando-nos ainda mais de metas que já são demasiadamente difíceis de alcançar.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

A Gazeta integra o

Saiba mais

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.

A Gazeta deseja enviar alertas sobre as principais notícias do Espirito Santo.