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Os autores são economistas, ambos com mestrado e doutorado e com longa experiência na academia, no setor público e com diversas atividades no setor privado. Foram, respectivamente, secretário do Planejamento e secretário da Fazenda do ES

Fundo Soberano: precisamos falar sobre os investimentos no ES

O Espírito Santo não pode queimar os recursos públicos constituídos em programas de retornos sociais duvidosos. A prática daqui está muito distante da que a Noruega adotou. E olhem que por lá não há as profundas mazelas sociais daqui

  • Guilherme Narciso de Lacerda e José Teófilo de Oliveira Os autores são economistas, ambos com mestrado e doutorado e com longa experiência na academia, no setor público e com diversas atividades no setor privado. Foram, respectivamente, secretário do Planejamento e secretário da Fazenda do ES
Publicado em 06/11/2023 às 15h59

O fundo soberano de maior destaque é o da Noruega, que o criou, em meados dos anos 90, com recursos provenientes da exploração de petróleo e gás no Mar do Norte. Ele foi pensado como um fundo estabilizador das receitas de royalties e como uma reserva financeira e plano de poupança para gerações futuras. O seu patrimônio é da ordem de US$1,4 trilhão. A sua gestão é conservadora. O governo pode sacar anualmente o retorno de até 3% ao ano para reforçar seu orçamento (em favor das gerações presentes). Assim, preserva para as gerações futuras os ativos do fundo.

A Noruega, país com cerca de 5,4 milhões de habitantes, já possuía uma das maiores rendas per capita do mundo. A constituição do fundo evitava um impacto fulminante na economia interna com a entrada dos recursos extraordinários que recebia.

No Brasil, alguns municípios com receitas elevadas de royalties de petróleo também fizeram seus fundos, e o mesmo foi feito pelo nosso governo estadual. O Funses - Fundo Soberano do Espírito Santo – foi criado por meio da Lei Complementar nº 914, de 17 de junho de 2019. Seu objetivo legal é o de “garantir uma gestão responsável e de longo prazo das receitas provenientes da exploração dos recursos de petróleo e gás natural do Estado, beneficiando as gerações atuais e futuras”. Atualmente o seu patrimônio está em R$ 1,37 bilhão.

Passados quatro anos de sua criação, o que temos? Foi criado um programa para financiar startups de base tecnológica em 2022, com aporte de R$ 250 milhões e, agora, em 2023, foi lançado um programa que também destina R$ 250 milhões a empresas que atendam aos princípios de ESG (governança, meio ambiente e ação social). Há anúncio de que o governo pretende lançar um terceiro programa para estimular a geração de energia limpa.

Nos dois programas já lançados há uma exagerada concessão de subsídios financeiros, sem comprovação de seus benefícios sociais. Um apoio com recursos públicos à inovação e desenvolvimento tecnológico que traga benefícios constatáveis para a sociedade é uma coisa. Outra, muito diferente, é apoiar nichos de potenciais fintechs com dinheiro público, sustentando consultorias caras, sob o pretexto de se constituir um ecossistema virtuoso e espelhando-se nas big techs.

Ilustração de dinheiro dos cofres públicos
Fundo Soberano. Crédito: Jose Luis Stephens

O segundo programa tem repercussões mais graves. Ele se apropria de quase 20% do patrimônio do FS para adquirir debêntures não conversíveis com juros baixíssimos e prazos longos emitidas por empresas grandes, com faturamentos de bilhões, que não precisam de tais incentivos. É um flagrante absurdo!

O nosso Estado possui quase 4 milhões de habitantes, e persistem enormes deficiências sociais e uma incômoda desigualdade de renda e riqueza. Os dados de pobreza urbana são elevados; a Região Metropolitana está marcada por elevados índices de violência. Mais de um milhão de pessoas viviam em 2022 abaixo da linha da pobreza ou da extrema pobreza. As famílias carentes sofrem com as frágeis políticas públicas, especialmente em segurança pública, educação e saúde. Os dados recentes do IBGE revelam que nosso Estado tem um destacado potencial econômico, mas também fortes desníveis sociais.

Diante de tal realidade é preciso rediscutir o Funses. A geração futura que o fundo declara preocupar-se nasceu ontem e está nascendo agora em nosso Estado. Grande parte dela vem de famílias pobres, monoparentais e chefiadas por mães solo, sem qualquer apoio para criar seus recém-nascidos e vivendo em alta vulnerabilidade. Esse é o público alvo a ser apoiado pelo Funses.

A maior contribuição para o futuro do Espírito Santo é instituir um programa moderno de creches e pré-escolas de tempo integral, com abrangência de larga escala nas periferias e áreas faveladas de nossas cidades. Um programa que seja referência nacional e internacional. Esse é o investimento de maior retorno social e de transformação estruturante que o Funses pode fazer.

Vale lembrar os ensinamentos do laureado professor James Heckman ao demonstrar que a maior taxa de retorno dos investimentos públicos ocorre quando se investe o mais cedo possível, desde o nascimento até os cinco anos de idade, em famílias carentes. Apoio às habilidades na primeira infância impactam positivamente as habilidades seguintes, de uma forma complementar e dinâmica. Simultaneamente, liberam adultos que cuidam precariamente dessas crianças para viverem com mais dignidade, inclusive permitindo que retornem ao mercado de trabalho e/ou completem seus estudos.

E há dinheiro suficiente para isso preservando o valor do próprio Funses, utilizando-se os rendimentos recebidos. O Espírito Santo não pode queimar os recursos públicos constituídos em programas de retornos sociais duvidosos. A prática daqui está muito distante da que a Noruega adotou, e olhem que, por lá, não há as profundas mazelas sociais daqui.

Hoje, da forma em que está, o Funses é simplesmente um fundo financeiro que amplia a transferência de renda para corporações que dele não precisam. E mais preocupante ainda é saber que, com as dimensões dos subsídios financeiros concedidos, ele terá vida curta. O seu patrimônio minguará a cada programa lançado. As autoridades públicas atuais não têm o direito de seguir nessa trilha. A sociedade capixaba precisa ser ouvida. Nosso futuro exige.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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