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É arquiteta e urbanista presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Espírito Santo (CAU-ES)

Entre despejos e ocupações, criação de uma agenda habitacional no ES é urgente

O CAU/ES se coloca à disposição para colaborar tecnicamente com Governo do Estado, prefeituras, Ministério Público, Defensoria e sociedade civil na construção dessa agenda

  • Priscila Ceolin Gonçalves Pereira É arquiteta e urbanista presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Espírito Santo (CAU-ES)
Publicado em 12/09/2025 às 14h32

Nos últimos dias, a crise habitacional voltou ao centro do debate na Grande Vitória. Houve a reintegração de posse e demolição de moradias na Vila Esperança, em Vila Velha e, em paralelo, a ocupação do antigo prédio do TRT-ES no Centro de Vitória por famílias que pedem resposta do poder público. Esses episódios escancaram o óbvio: quando a política habitacional falha, o conflito se instala nas ruas e nas portas das instituições.

Não se trata de circunstâncias isoladas. O Espírito Santo tem um déficit habitacional estimado em 92,3 mil domicílios (6,3% do total) (Dados da Fundação João Pinheiro), e a principal causa é o “ônus excessivo com aluguel”: famílias que comprometem parcela insustentável da renda para conseguir morar. No Espírito Santo, 70% do déficit é explicado por esse peso do aluguel — realidade que atinge principalmente quem ganha até três salários mínimos.

O cenário nacional reforça a tendência: o percentual de domicílios alugados subiu de 18,4% (2016) para 23% (2024), segundo o IBGE — um salto de 25%, em um período de renda apertada e custos em alta. Em outras palavras: cada vez mais gente depende do mercado de locação, enquanto os preços correm à frente do bolso de quem ganha menos.

Diante disso, é compreensível que surjam movimentos sociais pedindo soluções — mas a resposta estrutural cabe ao Estado, por meio de políticas públicas contínuas e bem desenhadas. Em situações emergenciais, apoios temporários, como auxílios de aluguel anunciados para famílias atingidas pela reintegração, podem reduzir danos imediatos; porém, sozinhos, não resolvem o problema. É preciso construir uma política estável, com metas, governança e orçamento.

O caminho sobre o que deve ser feito está dado pelo marco legal brasileiro. A Constituição Federal reconhece a moradia como direito social, e o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) estabelece instrumentos para que municípios cumpram a função social da cidade e da propriedade: Plano Diretor efetivo, Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), parcelamento/edificação/uso compulsórios (PEUC), IPTU progressivo no tempo, desapropriação com pagamento em títulos, outorga onerosa, entre outros.

É hora de regulamentar e aplicar esses instrumentos de forma consequente em todos os municípios capixabas, priorizando a produção e a destinação de moradia bem localizada.

Uma agenda possível para a Região Metropolitana precisa assumir a locação social como política permanente. É fundamental ampliar programas em que o poder público, de forma direta ou em parcerias público-sociais, constitua um estoque de moradias e as alugue com valores proporcionais à renda, garantindo estabilidade, localização adequada e acesso a serviços urbanos.

Antigo prédio da Justiça do Trabalho é ocupada no Centro de Vitória
Antigo prédio da Justiça do Trabalho é ocupado no Centro de Vitória. Crédito: Alberto Borém

Já existem referências no Brasil e recomendações recentes de centros de pesquisa urbanos para a implementação de “bolsas-aluguel” e modelos de locação social com desenho inclusivo.

Outro passo essencial é a reabilitação de imóveis vazios e bem localizados. Mapear esses espaços e aplicar instrumentos como o PEUC, o IPTU progressivo e as ZEIS em áreas com infraestrutura é uma estratégia que deve ser priorizada, sobretudo para o reúso habitacional.

A agenda também deve acelerar a regularização fundiária com melhoria habitacional. Isso significa combinar a titulação de imóveis com obras de urbanização e intervenções qualificadas nas casas já existentes. Afinal, moradia digna não se resume à construção de novas unidades: muitas vezes, qualificar o que já existe representa melhor custo-benefício e menor impacto social.

Outro eixo indispensável é a assistência técnica pública e gratuita (Athis). A implementação efetiva da Lei 11.888/2008 deve se consolidar como política continuada, com editais permanentes e equipes multidisciplinares voltadas a projetos, laudos, reformas e acompanhamento de obras para famílias de baixa renda.

Assim, para sustentar essa agenda, é necessário criar uma carreira de Estado para arquitetos(as) e urbanistas. É preciso consolidar quadros técnicos municipais e estaduais, estabelecendo metas mínimas por população para planejar, licenciar, fiscalizar, projetar e executar programas habitacionais e urbanos. Sem equipes estáveis, a política se perde em respostas pontuais e sem continuidade.

Por fim, é urgente estruturar uma governança metropolitana com metas públicas claras. Estabelecer objetivos anuais para a produção de locação social, reabilitação de unidades, regularização de domicílios e atendimento de famílias por Athis, com monitoramento e transparência, é condição indispensável para que a Região Metropolitana avance em direção a uma política habitacional consistente, inclusiva e duradoura.

Essas estratégias são importantes porque quando o aluguel consome metade ou mais do que uma família que ganha até dois salários mínimos recebe, a escolha vira cruel: comer ou morar. Os dados mostram que esse peso do aluguel é hoje o motor do déficit habitacional no Espírito Santo, e não haverá solução duradoura sem enfrentar o tema com políticas de locação social, reúso de imóveis, regularização e assistência técnica.

O CAU/ES se coloca à disposição para colaborar tecnicamente com Governo do Estado, prefeituras, Ministério Público, Defensoria e sociedade civil na construção dessa agenda. Defendemos cidades planejadas, inclusivas e resilientes, onde o direito à moradia digna é realidade, não promessa.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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