Foi publicada em 17 de julho de 2025 a Lei Estadual nº 12.479, autorizando famílias a impedir que seus filhos participem de atividades escolares sobre igualdade de gênero. A medida, que pode parecer uma simples “garantia de escolha familiar”, é, na verdade, uma tentativa disfarçada de censura. Viola diretamente a Constituição Federal e deve ser declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, como já ocorreu em outras situações semelhantes.
A Constituição é clara: a educação é direito de todos e dever conjunto do Estado e da família (art. 205), devendo visar ao pleno desenvolvimento da pessoa, à cidadania e ao preparo para o trabalho. O artigo 206, inciso II, garante que o ensino deve se basear na liberdade de aprender, ensinar e pesquisar, promovendo o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas.
Ao permitir que famílias filtrem conteúdos sobre diversidade e igualdade de gênero, essa lei não protege crianças: ela ataca a própria essência do sistema educacional e compromete a formação de cidadãos preparados para viver em uma sociedade democrática.
Mais do que inconstitucional, a lei afronta princípios fundamentais do Estado brasileiro. O artigo 1º, inciso III, assegura a dignidade da pessoa humana como fundamento da República. O artigo 3º, inciso IV, estabelece como objetivo fundamental “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Ao proibir que escolas abordem temas como igualdade de gênero e respeito à diversidade, o Estado, por meio dessa lei, não apenas falha em seu dever, como contribui para a perpetuação de preconceitos e comportamentos violentos.
A medida também ignora compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Tratados como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos obrigam o país a adotar políticas educacionais para promover a igualdade e combater a discriminação.
Além disso, desde 2015 o Brasil é signatário da Agenda 2030 da ONU, cujos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável incluem, entre 17 metas globais, a eliminação de todas as formas de violência e discriminação de gênero, o combate ao casamento infantil e a valorização da autonomia de meninas e mulheres.
Não se trata de um debate abstrato. São questões urgentes da nossa realidade. O Brasil ocupa o quarto lugar no mundo em números absolutos de casamentos infantis, atrás apenas de Índia, Bangladesh e Nigéria. Até 2019, nossa lei permitia casamentos de meninas com menos de 16 anos em casos excepcionais. E a violência de gênero segue alarmante: de acordo com o Anuário de Segurança, em 2024 uma pessoa foi estuprada a cada seis minutos e quatro mulheres foram vítimas de feminicídio por dia.
Quando falamos de expectativa de vida, a desigualdade se acentua: enquanto a média nacional é de 76,8 anos (73,1 para homens), pessoas LGBTQIAPN+, especialmente pessoas trans, vivem em média apenas 35 anos — menos da metade. Essa redução brutal está ligada a violência, expulsão familiar, exclusão social e falta de acesso a serviços básicos.
Silenciar escolas sobre essas questões não protege crianças e adolescentes. Pelo contrário, perpetua ciclos de desigualdade, preconceito e violência que já ceifam vidas todos os dias. A escola, com seus profissionais qualificados, é o espaço legítimo para discutir gênero, sexualidade, gravidez na adolescência e diversidade — temas que têm impacto direto na vida e no futuro dos jovens.
Chamar esses debates de “doutrinação” é uma estratégia política desgastada. Em geral, parte de grupos conservadores que, ironicamente, usa igrejas como palanque para promover suas próprias ideologias. A democracia garante a liberdade dessas vozes, mas não permite que se use a lei para calar professores, a ciência e os direitos humanos.
O STF já deixou claro em precedentes como a ADI 5668, a ADPF 457 e a ADPF 460 que leis que censuram conteúdos sobre diversidade e gênero nas escolas são inconstitucionais. Essa não será diferente. Mas, até serem derrubadas, normas como a Lei nº 12.479/2025 cumprem seu objetivo político: render manchetes, agradar setores radicais e desperdiçar dinheiro público, enquanto atrasam o país na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
Educar para a igualdade de gênero não é ideologia. É uma necessidade para proteger vidas, garantir direitos e formar cidadãos e cidadãs conscientes. Negar esse debate é escolher o lado da ignorância e da violência.
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