Já faz algum tempo que a chamada cultura maker e a adoção de impressoras 3D invadiram escolas brasileiras sob o discurso de inovação pedagógica, protagonismo estudantil e formação empreendedora. Em muitos casos, os laboratórios escolares, agora rebatizados como espaços maker, ganham um visual futurista e lúdico, que os faz lembrar brinquedotecas tecnológicas, repletas de engrenagens coloridas, fios brilhantes e máquinas que mais encantam pela aparência do que pela intencionalidade pedagógica.
Projetos esteticamente vibrantes, adornados por slogans motivacionais e entusiastas da inovação, passaram a se impor como vitrines da nova via do futuro educacional. Contudo, é preciso cautela. Mais do que uma revolução nos processos de ensino-aprendizagem, o que se assiste, muitas vezes, é a espetacularização da técnica, a estetização da inovação e, sobretudo, a fetichização do empreendedorismo escolar.
Fetichizar, nesse contexto, significa atribuir a determinados objetos, práticas ou discursos um valor autossuficiente, quase mágico, como se encerrassem em si mesmos a promessa de transformação. Trata-se de um mecanismo psicossocial que desloca o olhar das condições históricas e materiais que os produzem, legitimando sua circulação como soluções universais, neutras e incontestáveis.
Quando o empreendedorismo e as tecnologias educacionais são fetichizados, corre-se o risco de convertê-los em respostas padronizadas para problemas complexos, desconsiderando as desigualdades históricas, sociais e estruturais que atravessam a escola pública brasileira.
O resultado é um deslumbramento com a superfície, com o brilho das máquinas e a retórica da inovação, que obscurece o debate sobre o que realmente transforma a vida dos estudantes: currículo crítico, valorização docente, financiamento adequado e vínculo com o território.
A cultura maker, em sua essência, propõe elementos pedagógicos de inegável valor. O aprender fazendo, a experimentação criativa e a aceitação do erro como parte do processo cognitivo compõem uma abordagem potente para a construção do conhecimento.
Entretanto, quando transplantada de forma acrítica para o interior das escolas públicas brasileiras, essa proposta tem operado mais como modelo estéril de modernização do que como instrumento de transformação. Submetidas à lógica de mercado, as tecnologias educacionais deixam de cumprir sua vocação emancipadora e passam a figurar como ornamentos de um projeto pedagógico esvaziado de reflexão crítica, desconectado das realidades sociais que atravessam os sujeitos da escola.
Paulo Freire, em "Pedagogia do Oprimido", já nos alertava que "ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção". Em contraste com esse princípio, o que vemos é a imposição de uma pedagogia do produto, que valoriza a performance e o protótipo, mas ignora o processo formativo.
É nesse ambiente que o discurso empreendedor se infiltra como promessa redentora. A escola passa a ser estimulada a formar não sujeitos históricos, mas microempreendedores em potencial.
Fala-se em ensinar os alunos a criar soluções, inovar com propósito, transformar ideias em negócios. Mas raramente se ensina a problematizar o mundo. O empreendedorismo, quando despolitizado, reduz-se à idealização do esforço individual como resposta para problemas estruturais.
Trata-se de um discurso sedutor, mas cruel, pois silencia as desigualdades, transforma precariedade em oportunidade e apresenta o fracasso como falha pessoal, não como sintoma social.
Em adição a essa direção analítica, a difusão da cultura maker nas escolas brasileiras encontra ressonância com o diagnóstico formulado por Zygmunt Bauman em "Modernidade Líquida". Nessa obra, o autor descreve uma época marcada pela efemeridade dos vínculos e pela fragilidade das instituições.
Nesse cenário, tudo aquilo que antes parecia sólido, como o compromisso com o bem comum, os projetos coletivos e o papel formador da escola, tende a se dissolver em nome da constante adaptação ao sistema vigente, e não de uma transformação genuína orientada pela busca de elementos constitutivos da justiça social.
A educação, atravessada por essa lógica líquida, passa a incorporar discursos e práticas que cultivam um arremedo de inovação veloz e uma técnica desvinculada de sentido formativo, tudo isso em plena sintonia com a racionalidade empreendedora, que de maneira frágil tenta converter incertezas estruturais em oportunidades individuais.
O saber, reduzido a mera competência operacional, perde seu enraizamento ético e político. O que se promove, então, já não é uma formação integral, mas uma resposta superficial à insegurança do mundo do trabalho, que a própria escola deixou de problematizar.
Em territórios marcados pelas múltiplas ausências do Estado, onde pulsa o Brasil profundo, essa lógica adquire contornos ainda mais perversos. A chegada de uma impressora 3D em escolas carentes é celebrada como símbolo de modernização e avanço pedagógico. Contudo, na ausência de formação continuada para os docentes, de infraestrutura mínima para o uso sustentável da tecnologia e de um diálogo orgânico com os saberes e as urgências da comunidade, tais iniciativas tendem a se reduzir a puro espetáculo.
Imprime-se um chaveiro, monta-se um porta-canetas, estuda-se uma solução genérica, mas não se questiona quem tem acesso à energia elétrica ou dispõe de recursos para adquirir os próprios equipamentos. Quando a técnica se descola da realidade concreta, o que resta é a encenação do progresso, que brilha em apresentações institucionais, mas pouco transforma as condições materiais de existência dos estudantes.
É preciso, portanto, devolver à educação o seu sentido político. A quem interessa uma escola que ensina a imprimir objetos previamente projetados, sem discutir por que esse projeto foi escolhido, o que ele significa e a quem ele serve? Que tipo de formação se constrói quando se celebra a inovação sem problematizar a desigualdade? Sem um projeto pedagógico comprometido com a leitura crítica do mundo, a cultura maker perde sua potência emancipadora e se converte em mais uma engrenagem a serviço da alienação.
A renovação profunda da educação não será alcançada pela exibição de protótipos cuja motivação original se desconhece, mas pelo cultivo de consciências críticas capazes de interrogar o mundo e transformá-lo. Essa mudança se edificará na partilha generosa dos saberes, na escuta atenta das realidades locais e na produção coletiva de sentidos.
Assim, quando o fazer estiver orientado pelo pensar e a técnica subordinada a uma ética comprometida com a justiça social, talvez estejamos, enfim, diante de uma escola que não apenas responda às exigências do mercado, mas que ouse formar sujeitos integrais, preparados para a vida, para a promoção do bem comum e, por fim, para o usufruto da liberdade em seu sentido kantiano mais profundo.
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