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A objetividade jornalística como uma questão de conhecimento

Com efeito, os fatos nunca “falam por si só” e a operação de “tradução do que acontece” nunca é, e nem poderia ser, realizada automaticamente

  • Rafael Paes Henriques
Publicado em 28/11/2020 às 19h36
Jornalismo é modo particular de interpretar e organizar a realidade
Jornalismo é modo particular de interpretar e organizar a realidade. Crédito: r.classen/ Sthutterstock

Anteriormente, defendemos aqui a ideia de que a cobertura jornalística sobre declarações mentirosas de líderes da extrema-direita só pode ser bem realizada quando a atividade de produção de notícias supera o chamado jornalismo declaratório e a ingênua visão de objetividade que o fundamenta. Nesse sentido, em vez de uma questão formal de apresentação das informações; de simples estratégia para “fazer os fatos falarem por si só”; ou de recurso para sumir com toda a subjetividade ou intencionalidade dos jornalistas dos relatos, a objetividade jornalística deveria ser compreendida como um problema de conhecimento.

Sendo assim, esse valor central da atividade passa a ser uma questão de revelação, correspondência, adequação, representação possível ou ainda reconstrução/interpretação apropriada de acontecimentos de interesse público. Por esse caminho, desloca-se o problema de sua superficialidade para o que realmente é decisivo: a mediação qualificada entre a realidade e os cidadãos.

Evidentemente que essa perspectiva apresenta novas questões sobre a natureza do real; a respeito da possibilidade de acessá-lo; ou ainda com relação ao melhor meio para a sua determinação. Tanto é assim que se pode esperar que o jornalismo realize ações bem distintas, como vimos acima, a depender do entendimento epistemológico que se adote. Revelar é um verbo que indica uma atividade bem diferente de interpretar a realidade, para ficar em apenas dois exemplos.

Apesar dessas diferenças, o entendimento da objetividade jornalística como questão de conhecimento é o único horizonte possível para que se possa superar as limitações de coberturas nas quais as estratégias discursivas de apresentação dos acontecimentos parecem importar mais do que a própria natureza dos eventos. É que jornalismo não é apenas um discurso, não é, e nem pode ser, em última instância, uma questão de texto ou de retórica.

Essa perspectiva também abre caminho para o necessário e incontornável reconhecimento de que, assim como outras formas de conhecimento, o jornalismo é um modo particular de percepção, interpretação, organização e apresentação da realidade. Com efeito, os fatos nunca “falam por si só” e a operação de “tradução do que acontece” nunca é, e nem poderia ser, realizada automaticamente. Toda a suposta neutralidade ou passividade do jornalista, em nome da objetividade, resulta, na verdade, em oportunidade para a desinformação.

Quando Bolsonaro afirma que a Covid-19 é apenas uma gripezinha, por exemplo, não basta que o presidente tenha dito isso, dessa mesmíssima forma, mas importa também o caráter, o teor e o mérito do que o presidente disse. Com isso, não se quer defender a ideia de que todo o jornalismo, para ser objetivo, deva ser produzido com os mesmos procedimentos das agências de checagem de informação.

O que se quer é destacar que quando os jornalistas selecionam, e apresentam mentiras, como se a declaração incorreta fosse o único “fato” jornalisticamente interessante, como se não tivessem responsabilidade alguma com a adequação da declaração à realidade, e suas possíveis consequências, é a própria atividade de mediação que se coloca em xeque.

O autor é professor do Departamento de Comunicação Social da Ufes, mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho, doutor em Filosofia pela UFRJ e pós-doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA

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