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Entendimento sobre objetividade prejudica a investigação jornalística

Suspensão de discurso de Trump por emissoras de TV  levantou debate a respeito da legitimidade dessa interrupção, como se os veículos fossem obrigados a dar espaço a todas as sandices e somente depois apontar o que não era verdade

  • Rafael Paes Henriques
Publicado em 25/11/2020 às 13h00
Questão a ser superada é o jornalismo declaratório e a visão de objetividade que o fundamenta
Questão a ser superada é o jornalismo declaratório e a visão de objetividade que o fundamenta. Crédito: Clker Free/ Pixabay

No texto anterior, argumentamos aqui que o jornalismo declaratório é consequência, e encontra seu fundamento, na concepção de objetividade jornalística que se adota, devido à centralidade que este paradigma ocupa na atividade. Jornalismo declaratório é aquele que produz informações única e exclusivamente a partir daquilo que alguma fonte oficial de informação verbalizou, e que não se preocupa em verificar se o que está sendo dito corresponde, efetivamente, à realidade.

Nessa perspectiva, o que importa é a correção e a exatidão da transcrição do que se disse, já que se entenderia que ser objetivo é focar nos fatos, como se eles pudessem falar por si mesmos. Sendo assim, sempre que for verdade que uma autoridade pública tenha declarado o que foi noticiado, da forma como foi noticiado, o jornalismo terá cumprido com sua finalidade de realizar mediação qualificada. Quando vai além disso, o jornalismo correria sério risco de deixar de ser objetivo, por deixar de ser neutro ou imparcial.

A noção de objetividade como neutralidade entende o problema como sendo o esforço de retirar – e de fazer parecer que se excluiu – toda a opinião, entendimento, ou qualquer resquício de subjetividade do jornalista da produção noticiosa: da coleta das informações à redação das notícias. Somada a ideia de que os fatos falam por si só (facticidade), e a de que o jornalista não pode assumir nenhum posicionamento (imparcialidade) esses entendimentos de objetividade prejudicam a própria investigação jornalística e acabam produzindo notícias que se contentam em transcrever com precisão aquilo que se disse. 

Na cobertura informativa, os jornalistas não podem expor opinião ou posicionamento; não podem qualificar as declarações; não podem emitir juízo algum, ou qualificar o que se diz; e os relatos não deveriam nem mesmo apresentar qualquer indício que seja de interpretação a respeito do conteúdo das falas de autoridades públicas. Um prato cheio para os populistas de extrema-direita.

Mesmo que intuitivamente, a impressão é de que Trump Bolsonaro conhecem bem esse fundamento desde o qual o jornalista descreve “automaticamente” os fatos. Usam da importância do cargo que ocupam para fazerem com que suas declarações mentirosas sejam multiplicadas pelos veículos jornalísticos, sem nenhuma dificuldade. Logo após as eleições nos EUA, três grandes emissoras de televisão estadunidenses romperam essa lógica e decidiram interromper a transmissão ao vivo da entrevista em que Trump afirmava que havia ganhado o pleito.

O ineditismo da decisão causou surpresa e levantou um debate a respeito da legitimidade dessa interrupção, como se os veículos fossem obrigados a primeiro dar espaço a todas as sandices, na íntegra, e somente depois da transmissão apontassem o que não era verdade. Esse dilema é resultado de um falso problema. A questão a ser superada é o jornalismo declaratório e a visão de objetividade que o fundamenta. Assuntos para um próximo texto.

O autor é professor do Departamento de Comunicação Social da Ufes, mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Minho, doutor em Filosofia pela UFRJ e pós-doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA

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