Videocast debateu violência doméstica em alusão aos 19 anos da Lei Maria da Penha
Videocast debateu violência doméstica em alusão aos 19 anos da Lei Maria da Penha. Crédito: Arte: Camilly Napoleão

Mulheres rompem o silêncio e revelam como quebrar o ciclo da violência

Especialistas e vítimas de agressões físicas e emocionais contam como entraram e saíram das relações abusivas no podcast "Ela Pod, Todas Podem", do Todas Elas

Tempo de leitura: 11min

Vozes que precisam ser ouvidas e debates sobre como romper o ciclo da violência contra a mulher. Assim foi a primeira temporada do videocast ‘Ela Pod, Todas Podem’, de A Gazeta, que chegou ao fim, terça-feira (26). Com mediação de Elaine Silva, gerente-executiva de Produto Digital de A Gazeta e coordenadora do Todas Elas, a série trouxe histórias de mulheres que enfrentaram a violência e especialistas que mostraram caminhos de proteção e empoderamento.

Abrindo o diálogo e o espaço de informação, o primeiro episódio teve como tema “Agosto Lilás: os caminhos para a mulher vítima de violência pedir ajuda”. Participaram da conversa a defensora pública Fernanda Prugner, coordenadora de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, e a ativista Jucileia Santos Ribeiro, referência na luta feminista e no enfrentamento à violência de gênero.

Jucileia, de 50 anos, foi uma das primeiras convidadas da editoria Todas Elas. Ela foi vítima de violência por 14 anos, até que, com o amparo da Lei Maria da Penha, conseguiu obter medida protetiva e romper o ciclo abusivo. Para ela, o primeiro passo é reconhecer o perigo em que a mulher está inserida. 

Jucileia Santos Ribeiro

Ativista na proteção dos Direitos das mul

Ela tem que se conscientizar de que corre risco de vida, porque nós, mulheres violentadas, acreditamos muito naquela síndrome do príncipe: ‘esse homem vai mudar’ e ‘ele não me mata’. Deveria ser o contrário: a gente deveria acreditar que esse homem mata!
Da esquerda para direita: Jucileia Santos, Fernanda Prugner e Elaine Silva.
Da esquerda para direita: Jucileia Santos, Fernanda Prugner e Elaine Silva. Crédito: Farley Sil

Durante o bate-papo, Jucileia destacou ainda que a maioria das denúncias ocorre quando a vítima já está em risco iminente. “A mulher não acorda de manhã e fala: ‘eu resolvi denunciar’. Geralmente, quando vai denunciar, já sabe que não há mais esperança.”

O programa também discutiu os diferentes tipos de violência. Segundo as convidadas, muitas mulheres associam a violência doméstica apenas à agressão física, mas ela pode se manifestar de outras formas. A defensora Fernanda Prugner lembrou da gravidade da violência psicológica e digital. Ela citou, por exemplo, perseguições em redes sociais, difamações e stalkers.

“A gente tem a violência moral, quando o agressor difama a mulher para outras pessoas ou na internet. E temos também a violência sexual, inclusive dentro do casamento. Há ainda a patrimonial, que atinge os bens e recursos da vítima”, explicou.

Prugner ressaltou que o Estado precisa capacitar profissionais para lidar com essas situações e evitar que as vítimas sejam revitimizadas. Segundo ela, a Lei Maria da Penha não atua apenas na punição, mas em todas as etapas, desde a denúncia até a proteção integral da mulher.

“Por isso ela é considerada a terceira melhor lei do mundo pela ONU. Não trata só da punição: fala da educação do agressor, da desconstrução do comportamento violento e da proteção das crianças. É uma lei de amparo à violência doméstica e familiar como um todo”, destacou.

Para que o ciclo de violência seja rompido de forma efetiva, a defensora reforçou que a rede de apoio deve ser integrada, envolvendo não apenas o sistema judicial, mas também áreas como saúde, educação e assistência social.

Jucileia concordou com essa visão e lembrou que os agressores manipulam as vítimas, criando uma dependência emocional que dificulta a percepção da situação de violência. Para ela, essa relação é comparável a um vício. “A dependência dessa mulher é como a de uma pessoa dependente química. O dependente sabe que a droga faz mal e continua usando. É a mesma lógica”, explicou.

Mesmo após denunciar e conseguir medidas protetivas, muitas mulheres ainda enfrentam desafios que podem levá-las a retornar ao agressor, como falta de segurança, dependência emocional e financeira, e falhas do Estado em oferecer suporte social adequado — como aluguel social, emprego, prioridade em atendimentos psicológicos, matrícula escolar para os filhos e transporte para delegacias e IML.

“Todas nós já sofremos violência"

O segundo episódio da sequência de lives debateu o tema “Da denúncia à proteção: O que acontece depois da mulher romper o silêncio?”. Participaram como convidadas a advogada criminalista Layla Freitas, presidente da Comissão da Mulher Advogada (CMA) da OAB-ES e secretária da Abracrim Mulher, e a locutora da Rádio Litoral, Natizinha.

“Eu cheguei a um ponto de que eu orava para Deus me levar, porque eu não estava aguentando mais a carga psicológica”. Foi com essa fala que Natizinha relembrou seu estado emocional após sofrer violência doméstica em 2016. A apresentadora contou que passou um ano sem conseguir falar sobre o assunto e só conseguiu compreender a gravidade da situação quando se viu quase “no fundo do poço”, enfrentando ansiedade, depressão e bulimia.

Da esquerda para direita: Layla Freitas, Natizinha e Elaine Silva.
Da esquerda para direita: Layla Freitas, Natizinha e Elaine Silva. Crédito: Farley Sil

O relato reforçou que nem sempre as marcas da violência são físicas ou visíveis. Layla lembrou que o feminicídio é apenas o desfecho de um processo. “O feminicídio é o ato final. A violência começou antes”, afirmou.

A advogada destacou ainda que, em muitos casos, os abusos não começam com agressões físicas, mas com tentativas de controle. “Pode começar com frases como ‘não quero que você converse com tal pessoa’ ou ‘me dá sua senha do celular’. Isso é sutilmente uma violência. Ele quer ter controle sobre você”, exemplificou. 

Outro ponto debatido foi a importância da Lei Maria da Penha, que completou 19 anos neste mês de agosto. Para Layla, apesar dos avanços, trata-se de uma legislação ainda jovem. “Ela saiu da adolescência agora, então os nossos direitos são muito recentes”, explicou. Desde a sua criação, a lei já passou por mais de 30 atualizações para acompanhar as mudanças da sociedade.

Casos extremos também foram lembrados. Ao comentar sobre a tentativa de feminicídio em que uma vítima recebeu 61 socos em poucos segundos, Layla ressaltou que esse tipo de violência busca não apenas ferir, mas também destruir a autoestima da mulher.

Elaine Silva

Gerente-executiva de Produto Digital de A Gazeta

É para desfigurar, para que aquela mulher não tenha aquele rosto bonito, fruto do ciúme. Isso é muito complicado

Natizinha revelou que, hoje, ser uma das vozes mais conhecidas do Estado já representa um ato de resistência. Quando entrou na faculdade de Jornalismo, contou que não sonhava em aparecer em frente às câmeras. “Eu queria trabalhar de uma forma que as pessoas não me conhecessem, porque não me sentia confortável em ser vista”, afirmou.

Quase dez anos após o episódio de violência, ela ainda sente as marcas do que passou. Recentemente, ao reencontrar o agressor, sofreu uma crise de pânico. “Até hoje não consigo conversar tanto com meus pais sobre isso, porque para mim ainda é uma dor. A mulher que foi vítima de violência doméstica nunca esquece”, disse.

Durante o podcast, foi destacado também como o acolhimento é fundamental no processo de cura das vítimas. “O que eu costumo dizer é: acolhe essa mulher, fortalece essa mulher, ouça essa mulher, para que ela se sinta preparada e forte o suficiente”, reforçou Layla.

No encerramento, a mediadora Elaine Silva deixou uma mensagem. “Eu espero que a gente consiga não só lutar, mas que a gente consiga viver. Acho que é o apelo de todo mundo. Não é apenas sobreviver, é viver - e viver com liberdade”, concluiu.

“É preciso humanizar a aplicação da Lei Maria da Penha”

O terceiro episódio teve como tema ”Lei Maria da Penha: a importância das medidas protetivas e como fazer elas serem respeitadas”, contou com a participação da juíza e coordenadora estadual de enfrentamento à violência do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), Hermínia Azoury e a co-fundadora do coletivo de mulheres, Papo de Quinta, Flávia Herkenhoff.

A juíza Emília Azoury tem uma longa trajetória profissional e dedicou o seu juizado para mulheres vítimas de violência. A magistrada conta que escolheu cursar direito para fazer a diferença na sociedade. Durante sua vida. “ Eu nunca fui uma magistrada de gabinete, gostava de fazer acontecer, de ver as coisas se realizarem e de ver a lei prosperar, não só no sentido legal, mas do ponto de vista humano, para humanizar”.

O início de sua carreira profissional aconteceu junto com a criação da Lei Maria da Penha, em 2006, atuando como juíza substituta na Serra, primeiro município a criar uma vara de violência doméstica no Espírito Santo. A juíza Hermínia Azoury foi professora, defensora pública e há 31 anos exerce a magistratura.

A magistrada defendeu o suporte e informações para vítimas de violência e da ação conjunta da polícia, dos órgãos responsáveis e da justiça.

Flavia Herkenhoff é formada em administração e começou a empreender com confeitaria. Em 2018, tornou-se co-fundadora do coletivo de mulheres, Papo de Quinta. “É uma comunidade que nasceu para fomentar o empreendedorismo e a liderança feminina. Mesmo naquela época, as mulheres não tinham espaços nos grupos já existentes e eu falei: ‘Não preciso ficar brigando com ninguém, a gente cria o nosso espaço’”, conta.

Da esquerda para direita: Flávia, Hermínia e Elaine Silva.
Da esquerda para direita: Flávia Herkenhoff, Hermínia Azoury e Elaine Silva. Crédito: Farley Sil

A empreendedora passou por um relacionamento abusivo e foi vítima de violência doméstica e alerta que os sinais começam a aparecer de maneira sutil e vem disfarçado de cuidado, o que torna mais difícil perceber o alerta e denunciar. “A gente fala muito dessa violência física, que deixa a marca, deixa roxo e que tira sangue, mas a violência psicológica também vai te matando aos poucos e é mais difícil de sair por causa da dependência emocional”, destaca.

Flávia conta que mesmo tendo acesso à informação, não conhecia a Lei Maria da Penha a fundo. Ela também relata ter sido desencorajada de registrar o boletim de ocorrência, mas que superou a pressão e que prosseguiu com a ação, fez a denúncia e pediu a medida protetiva. 

Flávia Herkenhoff

Co-fundadora do Papo de Quinta

Eu sinto que desde o momento que eu fiz a denúncia, que sou eu que tenho a minha liberdade privada. Eu já tinha minha independência, morava num apartamento que ele quebrou a porta. Para me sentir segura, tive que dormir na casa dos meus pais e em lugares diferentes para ele não ter a minha rotina

"Eu simplesmente tive que acabar com o meu sonho, porque eu tinha uma confeitaria e eu já não conseguia mais dar conta porque eu estava fragilizada”, relembra. As convidadas do videocast ressaltaram a importância de não se calar e denunciar a violência e a necessidade de conhecer a Lei Maria da Penha, uma vez que a falta de informação é o que impede que muitas mulheres denunciem.

Flavia frisa a importância de buscar tratamento e ajuda psicológica para recuperar a saúde mental depois de sofrer violência. A juíza Hermínia também destaca a importância da prevenção através do apoio psicossocial a crianças em vulnerabilidade e que vivem em ambientes de violência, para que no futuro não se tornem agressores, e da importância de aplicar a Lei com mais humanidade.

“É preciso romper o ciclo de violência”

Já o quarto e último episódio do videocast, teve como o tema central “Live: Políticas para mulheres: o papel do Estado e os desafios do enfrentamento à violência”, teve a participação da secretária de Estado das Mulheres, Jacqueline Moraes e da jornalista e apresentadora do programa Em Movimento, Daniela Carla. O videocast debateu a responsabilidade do Estado.

Jacqueline Moraes já foi vice-governadora do Espírito Santo e hoje atua na Secretaria de Estados das Mulheres. A secretária revela que cresceu em um ambiente de agressividade e que costumava gritar por ajuda na janela de casa em momentos que presenciava a violência. Eu era a filha que botava a cara na janela e gritava 'Socorro!', gritava para os vizinhos ouvirem. Lembrando disso recentemente, eu pensei assim: ‘tá vendo como denunciar resolve?' Porque eu, na minha inocência de criança, 5, 6 anos, eu botava a cara na janela e gritava, denunciava e ele parava”.

Além disso, ela destaca a importância da desconstrução do machismo, que é um problema estrutural e que afeta toda a sociedade “A gente já sabe que existe a masculinidade tóxica gerada pelo patriarcado e pelo machismo estrutural da nossa sociedade. E a gente sabe que esse poder que o homem que ele quer impor sobre a mulher ele precisa ser desconstruído”, afirma.

A secretária ressalta a importância da sociedade de reprimir homens agressores e que acredita na mudança social. “Quando eu faço palestra para homens, eu sempre falo. “Você nasceu de um ventre de uma mulher. Sua primeira vacina foi no seio de uma mulher. Talvez seus primeiros passos foram segurando as mãos de uma mulher e seu primeiro beabá provavelmente foi uma mulher que te ensinou. Quando essa sociedade rompe com esse cordão umbilical de uma maneira tão agressiva e violenta, que essa mulher passa a ser um objeto seu que você quer agredir, é porque existe algo social’, afirma.

A apresentadora Daniela Carla compartilhou, no videocast, que foi vítima de violência doméstica durante 11 anos de relacionamento e se considera uma sobrevivente. Ela conta que hoje em dia usa a sua voz para dar visibilidade ao assunto e alertar outras mulheres.”Eu fiquei 11 anos num relacionamento abusivo com violência doméstica. Eu sinto que se Deus me permitiu viver, eu tenho um motivo. Eu preciso falar sobre isso e eu não tenho direito de guardar isso para mim e por isso eu falo muito das minhas redes sociais. Um dos motivos que impede a mulher de falar é o medo de ser julgada, principalmente, por outras mulheres, além da vergonha e da culpa”, relata.

Da esquerda para direita: Jacqueline Moraes, Dani Carla e Elaine Silva.
Da esquerda para direita: Jacqueline Moraes, Dani Carla e Elaine Silva. Crédito: Gabriela Maia

Dani Carla contou que durante o relacionamento, o agressor tentou isolá-la do ciclo social e familiar, além de demonstrar ciúmes excessivo. Por este motivo, chama a atenção para que as mulheres não ignorem os sinais de violência dentro do relacionamento. “Eu lembro que quando a gente discutia no namoro, ele me xingava e eu falava ‘gente, mas ninguém nunca me chamou disso’. E ele dizia: ‘te xinguei de palavrão, mas se eu quisesse te bater, eu te batia’. E eu ficava pensando que se ele realmente quisesse me bater, ele batia.”

Ela conta que relativizava muitas atitudes, e que com o tempo, a violência física começou a aparecer em forma de empurrões e apertões no braço, mas que evoluiu para outros tipos de agressões. “Ele fez isso comigo inúmeras vezes, e eu falava pra minha mãe que não tinha acontecido nada, porque também tem a vergonha e tem a culpa. Uma culpa que você dá para explicar.

Daniela Carla

Jornalista e apresentadora do Em Movimento

Eu apanhava e pedia desculpas. Você imagina em que ponto tem que estar a autoestima de uma mulher doente, para que ela apanhe e peça desculpas. 

“Depois ele vinha falar que não ia mais fazer, me pedia desculpas e falava ‘mas a culpa é sua você que me tira do sério, eu não sou assim’. relembra a jornalista. “Quando você vê, você está perdoando o imperdoável. E eu relativizava aquilo”, completa.

A jornalista conta que teve coragem de romper o ciclo em uma ocasião em que o agressor ameaçou bater nela e na sua filha. “Ele é fotógrafo e um dia ele foi trabalhar, e ele ameaçou bater em mim e na minha filha. Quando ele saiu eu disse ‘Filha arruma suas coisas que a gente vai sair de casa agora. Pega tudo que você puder que a gente vai pra casa da vovó”. Ela conta que só fez a denúncia meses depois, registrando ameaças que ele fazia, quando ainda estava a perseguindo.

As convidadas encerraram o episódio frisando a importância da denúncia e de não criar a imagem de um montro. “Não é um monstro. Não podemos normalizar mas também não podemos monstrualizar. Muitas vezes esses homens são bonitos, fortes, com perfil másculo. Não vai ficar esperando o monstro, porque ele não vem. São homens covardes’, alerta Jacqueline.

“A gente precisa olhar pros dados no Espírito Santo. No ano passado, nós tivemos 14.000 mulheres com medidas protetivas e nós tivemos 38 feminicídios. Mas se você for olhar os 38 casos, somente duas tinham medida protetiva e as vítimas tinham denunciado os agressores. De 38 casos, 36 nunca denunciaram, e acabaram chegando no feminicídio”, completa a Secretária.

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