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Os multipotenciais: todos os talentos ao mesmo tempo e agora

Os multipotenciais: todos os talentos ao mesmo tempo e agora

Curiosas, criativas e talentosas, essas pessoas colecionam paixões e não conseguem escolher apenas uma delas para transformar em carreira

Publicado em 7 de fevereiro de 2020 às 19:45

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Clara Nahas, arquiteta, ilustradora e produtora de conteúdo: ela é uma multipotencial. (Ricardo Medeiros)

Mark é publicitário. Mas fez alguns trabalhos como fotógrafo. Também já teve sua própria marca de roupas e acessórios masculinos. Agora está para lançar seu primeiro livro. E faz planos para um dia, quem sabe, atuar como psicanalista.

Você deve conhecer pessoas assim. Curiosas, criativas, talentosas, elas colecionam paixões e, muitas vezes, não conseguem escolher apenas uma delas para seguir e transformar numa carreira. Costumam se dedicar a múltiplos projetos e ser bem sucedidas neles.

Como Clara, arquiteta, que não se contenta em fazer projetos arquitetônicos. Ela se dá bem desenvolvendo estampas para roupas e papéis de parede, por exemplo. Boa comunicadora que é, ainda produz conteúdo para redes sociais, onde coloca suas reflexões sobre moda, decoração, saúde mental, compostagem e tudo o mais.

Mark e Clara fazem parte dos chamados multipotenciais, uma turma que dificilmente vai passar a vida em uma única empresa, fazendo somente uma atividade profissional.

Parece simples e até divertido ser alguém com essas características. Nem sempre é. Ter dons e gostos muitas vezes extremamente diversos pode ser um baita complicador na vida, virar um drama, uma angústia. É comum, para esses seres plurais, experimentar uma certa incerteza sobre qual direção seguir e um medo de não chegar a lugar algum. Alguns se sentem um peixe fora d’água, um malabarista fora do picadeiro.

"Doidinha"

Clara Nahas, por exemplo, sempre se destacou pela criatividade. Na escola, fazia os trabalhos de arte mais inventivos. Ao mesmo tempo, era fera em matemática e jogava handebol muito bem. “Se tem uma característica que recordo sobre minha personalidade é que, desde muito nova, sempre tive muitas áreas de interesse. Hoje entendo que isso tem um nome: multipotencialidade. Mas quando eu era mais nova só achava que era meio doidinha mesmo”, relata em seu canal no Youtube.

A época do vestibular, obviamente, não foi tranquila, nem depois e depois... “Sempre fui boa de notas. Acabei optando pela Medicina. Fiz dois pré-vestibulares. Até que passei. Quando me matriculei numa faculdade particular, disse para meu pai: ‘não está certo isso’”, conta ela.

A decisão pela Arquitetura parecia a mais acertada mesmo. “Quando entrei no curso, achei que as inquietudes iriam passar. Era uma profissão concreta. Dava para criar uma carreira. Mas eu não estava 100% satisfeita”.

Clara gostava do que fazia. Mas também amava outras coisas e não queria abrir mão de nenhuma delas, embora parecessem não ter uma conexão entre si. Assim, mesmo quatro anos depois de se formar e com um escritório todo montado, a jovem não estava tão segura do caminho que estava trilhando. Aos 29 anos, ela travou.

“Parei de ver sentido naquilo tudo. Parei de ter segurança de que estava tudo bem gostar de fazer tantas coisas assim. Foi algo que me machucou muito. Não queria ser só arquiteta. Ficar oito horas por dia no escritório não me deixava preenchida. Então, usava as horas livres para ser as outras coisas, para me dedicar à estamparia e ao design, para fazer meus vídeos para Instagram. Fui tentando balancear. Até que decidi me desligar”.

Foi nesse break que Clara pensou e repensou o que queria fazer profissionalmente. “Eu via histórias de pessoas bem sucedidas na carreira que enfiaram a cara numa paixão e que deram muito certo. Isso me gerava um pouco de ansiedade. Mas não era o que eu gostaria de ser”, diz. 

Decidiu que iria criar seu estúdio, onde juntaria tudo aquilo no que era boa em um só projeto. Entendeu que, amarrando seus talentos, seus interesses, conseguiria manter seu espírito livre. “Tive que organizar minha rotina. É um desafio, mas estou tomando decisões e modificando minha vida para que seja assim. Antes, achava que ao gostar de coisas demais, seria especialista de menos. Mas vejo que não preciso ser megaespecialista. O mundo precisa de especialistas, claro. Mas nem todas as pessoas precisam se encaixar nisso”, relata a arquiteta, ilustradora e produtora de conteúdo.

Se Clara hoje está se sentindo mais completa e confiante em sua jornada é porque passou por esse processo de autoconhecimento, algo que é fundamental para alguém com o perfil de multitalentos, segundo Renata Lapetina, empreendedora que criou, há quatro anos, o projeto Multipotenciais do Brasil.

Autoconhecimento

“Muitos relatam mesmo viver uma angústia em relação à profissão. Porque isso de, no começo da vida, escolher uma carreira e seguir se especializando cada vez mais nela é uma dificuldade para o multipotencial, que tem interesses variados e vontade de experimentar novas coisas. Além do mais, ele pode gostar de algo e achar que tem que ser um ganha-pão. E não precisa, necessariamente! O autoconhecimento vai ajudar essa pessoa e facilitar o caminho profissional dela”, comenta Renata.

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Achava que ao gostar de coisas demais seria especialista de menos. Mas vejo que não preciso ser megaespecialista

Clara Nahas
Arquiteta, ilustradora e produtora de conteúdo
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Essa autodescoberta pode vir de várias formas, diz ela: “A pessoa pode fazer terapia, escrever um diário e refletir ativamente sobre si mesmo, fazer cursos, criar um projeto pessoal no Instagram, fazer um trabalho voluntário em determinada área, por exemplo. Assim, vai sentindo se é isso que quer fazer, se é um interesse, se é algo que só de explorar um pouco já fica feliz, se pode ser só um hobby…”.

Mark Cardoso, publicitário, é um multitalento. (Marco Leal)

Inquieto por natureza, Mark diz que foi aprendendo aos poucos a lidar com essa particularidade. “Nunca me percebi como um multitalento. Por isso, nunca tive essa angústia. Tinha múltiplos potenciais, mas nem sequer tinha percebido que eles existiam. Fui testando, colhendo elogios, passando a acreditar… E se você acredita que tem uma capacidade, por que não?”, conta o publicitário de 36 anos, que mora atualmente em São Paulo.

Mark tem uma trajetória de sucesso, tendo passado por algumas das maiores empresas do país. Olhando para ele, ninguém diz que viveu um pesadelo no início da vida adulta.

“Nunca fui uma pessoa ótima em tudo. O vestibular, por exemplo, foi um tormento. Fui parar na Veterinária, aos 17 anos. No segundo ano, meu pai reparou que eu não estava bem, que não estava curtindo. Conversamos muito, e ele me perguntou o que eu queria realmente fazer. Disse que queria fazer Comunicação, mas estava sem graça de desistir depois de fazer meus pais pagarem meses de mensalidades da faculdade. Lembro que meu pai até me disse: ‘Então, vá ser repórter do Globo Rural!”, recorda.

E por muito tempo, ele parecia ter tomado o rumo certo. Trabalhava e, nos tempos livres, deixava seu lado inventivo aflorar. Foi quando criou sua própria marca de roupas e acessórios masculinos. “Começou com cinco, seis modelos de gravata borboleta e, quatro anos depois, tinha calça, camisa, parceria com grandes marcas, venda casada... Até que encerramos o projeto. Não que não tenha dado certo, porque deu. Pode ser que um dia volte”.

Tudo ia bem, só que Mark achou que era hora de mudar. “Comecei a achar que os valores ali não faziam mais sentido. Era trabalho, dinheiro. Sempre ocupado demais. Não dava conta dos compromissos sociais. Precisei dar um tempo na carreira. Juntou com o fim do meu casamento. Era final de 2015. Fui para Brasília ganhar 60% do que ganhava. Passei para o mestrado da UNB. Voltei a fazer análise. Precisava desse exílio.”

De volta a São Paulo, ele segue numa agência de publicidade e aguarda, ansioso, a publicação de seu primeiro livro. Mas não se fecha para novos desafios: “Trabalhar com psicanálise é um plano possível. Percebo em mim esse talento da escuta sensível. Estou ‘engatinhando’ ainda nisso, mas é um desejo”, revela Mark.

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Trabalhar com psicanálise é um plano possível. Percebo em mim esse talento da escuta sensível

Mark Cardoso
Publicitário
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Data: 04/01/2020 - ES - Vitória - Luisa Meirelles, 28 anos, dona da loja de roupas Luíza Meireles . (Carlos Alberto Silva)

Da mesma forma pensa a empresária Luisa Meirelles, 28 anos, que tem uma marca de roupas femininas com seu nome, mas que também tem uma voz já conhecida na cena capixaba. Já se sabe que quando não está criando vestidos ou cantando, ela está escrevendo poemas ou fotografando alguma coisa. “No geral, amo romantizar, poetizar o cotidiano. Faço isso com a poesia, com a moda, com a minha marca, com a música, com a escrita. Transito dentro disso tudo”.

Luisa fala com tranquilidade de como conseguiu unir todos seus gostos e habilidades em um propósito comum. “A fotografia, por exemplo, foi um dos primeiros motivos de ter criado a marca. A música também é parte disso, quando vou fazer o vídeo de uma campanha. E tem a escrita. Amo fazer poesia. É um escape e faço para divulgar campanhas. As coleções têm uma história por trás, uma espécie de roteiro”, relata.

Ah, ela também é advogada, apesar de, quando adolescente, cogitar estudar jornalismo. “Fiz faculdade de Direito, mas nunca cheguei a exercer a profissão. No meio do curso, percebi que não queria trabalhar com isso e criei minha marca como justificativa. Virei empresária”.

Quando apareceu com um banquinho e um violão, Luisa ouviu alguém questionar. “Já disseram: ‘Ué, vai virar cantora? Você não trabalha com moda, não é designer?’. Mas acho que as pessoas estão começando a enxergar essa ressignificação do sucesso, da realização pessoal, que para mim é ter uma rotina feliz. O próprio trabalho é uma recompensa, não a espera pelo futuro. Mas é uma troca simultânea. Estou sempre aberta ao que vai aparecer, ao que vou construir”, diz a jovem.

Pessoas como Luisa, Mark e Clara chamam atenção por onde passam, onde quer que atuem. “Os multipotenciais não são o perfil mais esperado do mercado hoje, mas isso está mudando”, observa Renata Lapetina.

Especialistas já vêm apontando que neste mundo cada vez mais complexo, pessoas criativas, ecléticas serão muito mais bem-vindas e necessárias. E presentes. Mas será que todos serão multipotenciais?

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Já disseram: ‘Ué, vai virar cantora? Você não trabalha com moda, não é designer?’. Mas acho que as pessoas estão começando a enxergar essa ressignificação do sucesso, da realização pessoal, que para mim é ter uma rotina feliz.

Luisa Meirelles
Empresária, cantora...
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Futuro

A tendência é que sim. É o que pensa Leonardo Carraretto, empreendedor e Pesquisador do Instituto Futuramos: “Hoje isso é mais questão de perfil. Amanhã vai ser uma característica mais comum. Não quer dizer que será uma característica de todos. No futuro, cada vez mais pessoas serão estimuladas a seguir esse caminho”, analisa ele.

É algo já visto nessa geração mais jovem. “Tudo começa por conta da profusão do conhecimento. Como a gente está tendo muito mais acesso à informação, os talentos que poderiam ficar adormecidos ou ocultos são estimulados. Aí, assim como a gente vai viver múltiplas funções ou vários potenciais e trabalhos simultâneos, vamos vivenciar fases diferentes, podendo ter de cinco a dez profissões ao longo da vida. Nesses ciclos de vida, aproveitar todo o potencial em vários momentos”, comenta Carraretto.

13 sinais de que você é um multipotencial

Você sente uma certa fobia de se comprometer (com uma carreira específica, por exemplo)

Você é atraído por diversas direções diferentes, por isso sente dificuldade de saber qual a direção correta

Você nunca se especializa em nada, sente que é sempre o iniciante

Já sentiu que parou de fazer o que estava fazendo pois teve medo de estar “perdendo algo melhor”

Você não consegue escolher uma carreira pois tem medo que seja a escolha errada para você

Você nunca está satisfeito e sempre procura “se melhorar”

A pergunta “o que você quer ser quando crescer” te atormenta, porque você não consegue pensar em uma resposta exata para ela

Você já foi muito bom em alguma coisa, mas depois de um tempo, perdeu o interesse por aquilo

Por muitas vezes, não consegue ver a conexão entre seus diferentes interesses

É curioso, quer saber sobre tudo e está sempre aprendendo

Você adora estudar novos assuntos e realizar atividades diferentes

As pessoas dizem que você precisa se especializar em algo

Você sente que não consegue terminar nada e sente frustração e fracasso quando pensa nos projetos que ficaram pelo caminho sem ser finalizado

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Fonte: Renata Lapetina (Projeto Multipotenciais do Brasil)

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