Publicado em 6 de março de 2020 às 06:00
Lembra de lá da sua infância, quando um coleguinha se recusava a emprestar a bicicleta nova e um outro mais popular na rua começava a colocar a turma toda contra ele, que era excluído de todas as brincadeiras? Transportando mais ou menos para os tempos de hoje, das redes sociais, esse menino seria cancelado. >
Sim, a moda agora é cancelar pessoas. Não importa se errou feio ou falou uma besteira? Está can-ce-la-do. Pelo menos por um tempo. Pelo menos, no Facebook, no Twitter e no Instagram.>
Pessoas comuns costumam escapar um pouco desse linchamento virtual. Políticos, artistas, influenciadores e outras celebridades são os principais alvos. Já aconteceu com Anitta, com José Mayer, Alessandra Negrini, Silvio Santos, Felipe Neto e com quase todos os homens do BBB20. É tanta gente, na verdade, que esse fenômeno vem sendo chamado de cultura do cancelamento.>
Mas será que é precisamos mesmo ir cancelando todo mundo? Existe lógica em, com apenas um clique, nos vingarmos de alguém de quem discordamos?>
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Para Vitor Burgo, jurista e doutor em Direito pela USP, esse comportamento não é novo, ele só ganha dimensões dessa natureza pelo potencial difusor da Internet.>
Quem cancela está tentando ser esse menino popular da rua. É que hoje a gente não se comunica mais na rua como antigamente, não sabe mais quem é o vizinho. A forma que encontramos de nos agrupar é na Internet. O cancelamento se tornou uma cultura justamente pelo fato de ele propiciar na Internet aquilo que perdemos no deslocamento do real para o virtual: o senso de pertencimento, integração, comunidade. Quando eu cancelo alguém e comunico essa decisão, todos os que chegam embalados pelo mesmo sentimento trazem aconchego, referendam minha ideia, fazem com que me sinta pertencente. É como ser aceito pelos amigos da nova escola ou pela turma do futebol, analisa.>
Acaba, porém, que parece não haver ninguém maduro ali. Qualquer coisa vira motivo para excluir um ou outro do "clubinho". O comportamento beira o superficial e infantil sim, afinal, na Internet não se exige aprofundamento ou conteúdo. Basta atitude. E aí, o ímpeto adolescente faz barulho! Ainda que o agente não seja dessa faixa etária, diz Vitor.>
A psicóloga Adriana Müller concorda. Em geral, acho o cancelamento algo muito infantil. Não é ignorando o outro, dando um gelo nele, que se soluciona um problema. Essa postura só revela o desagrado com o que a pessoa fez ou falou, comenta.>
Está todo mundo certo e, ao mesmo tempo, ninguém pode errar. Não há tolerância, diálogo. Novamente, para Vitor, não há novidade aí com a cultura do cancelamento. Nossa sociedade é, por natureza, resistente a se resolver, quer sempre se vingar. Isso está acontecendo na Internet. Só muda a forma de se vingar. Claro que não somos obrigados a concordar com ninguém. Mas nunca consigo resolver meu problema só falando. Temos que ter a capacidade de entender o ponto de vista do outro e encontrar um ponto de convivência pacífica., observa. >
Na visão de Adriana, um cancelamento não gera solução por si só, não resolve muita coisa. Quando você simplesmente cancela alguém, você fecha a porta e não tem mais conversa. Você está se fechando para qualquer tipo de diálogo, e vejo isso como algo ruim. A outra pessoa não consegue nem reverter a situação. Quem está cancelando parte do princípio de que o outro fez propositadamente, mas o outro pode ter feito sem ter parado para refletir.>
O cancelador, destaca a psicóloga, se coloca numa posição de superioridade ilusória, mas acaba sendo um opressor e impondo sua opinião sobre o outro. Todos podemos cometer vacilos. Todos somos falíveis. Ter essa compreensão tira a gente do direito de ficar excluindo o outro. Se quero um mundo em que as pessoas se respeitam, não vou ser aquela que fecha a porta na cara da outra, opina.>
Para ambos, no entanto, o cancelamento pode ter sim uma função pedagógica. Vitor cita o caso do rapper norte-americano Chris Brown, acusado de agredir a ex-esposa, a cantora Rihanna. Depois de sucessivos cancelamentos, ele deixou de ser um grande astro. Claro que não ficou pobre, mas saiu um pouco do cenário. >
O mesmo pode ser aplicado ao cantor sertanejo Victor, que formada dupla com o irmão na dupla Victor & Léo, condenado pela justiça após agredir a ex-mulher. A justiça enquadrou o crime como vias de fato, com pena de 18 dias em regime aberto. Isso gerou uma sensação de impunidade na sociedade. A ferramenta, no caso, foi o cancelamento, citou o especialista.>
O cancelamento, destaca Vitor, acontece porque a justiça não é capaz de dar resposta adequada e suficiente a essas agressões de magnitude global. Diante de uma atitude racista, por exemplo, qual decisão judicial poderia recompor satisfatoriamente esse estrago? A resposta é: nenhuma. Assim, no vácuo da justiça, sobra a vingança, que, em tempos de Internet, consegue provocar abalos financeiros e de outras ordens sobre o ofensor.>
Adriana também vê um aspecto positivo no cancelamento para esses casos, em que a pessoa cometeu uma falha grave, inquestionável. Em situações graves, como em casos de racismo, homofobia, misoginia, a gente não pode ser tolerante. Cabe uma postura firme. Essas pessoas têm que ser canceladas mesmo para que haja uma sociedade melhor, mais respeitosa, livre de tantos preconceitos.>
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