Publicado em 1 de julho de 2020 às 16:18
Em um resultado previsível, os russo votaram maciçamente a favor de um pacote de mudanças constitucionais que permitirá ao presidente Vladimir Putin ficar no poder após 2024.>
O que não é previsível é o caminho daqui até o fim do atual mandato de Putin, que agora poderá concorrer novamente à reeleição e, se vencedor, também em 2030.>
Se estiver no poder em 2028, será o mais longevo líder russo moderno, ultrapassando o ditador Josef Stálin (1878-1953).>
Segundo dados da Comissão Eleitoral Central, 73% dos russos votaram a favor das mudanças, com 25% das urnas apuradas.>
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O mesmo percentual fora relatado quando apenas 3% dos votos haviam sido contados, e a votação ainda ocorria na área ocidental dos 11 fusos horários do maior país do mundo.>
A entidade afirmou projetar um resultado final próximo disso, horas antes mesmo de as urnas serem fechadas. O comparecimento ficou na casa desejada pelo Kremlin, 65%.>
O referendo, que não era exigido para que a manobra do Kremlin aprovada pelo Parlamento e pela Corte Constitucional (o Supremo local) no começo do ano valesse, deu o verniz legalista desejado pelo presidente.>
Houve diversas denúncias de fraude, mais do que em eleições presidenciais, segundo a ONG Golos (vozes, em russos), que lida com transparência política.>
A votação foi estendida por cinco dias e permitida de forma online nas regiões de Moscou e de Níjni-Novgorod, para evitar aglomerações em meio à pandemia do novo coronavírus.>
As denúncias diziam mais respeito a garantir um comparecimento alto por meio de pressão e promessas de vantagens do que de propriamente alterar o voto.>
"Se você manipula demais, isso pode levar a protestos, como ocorreu em 2012", disse Samuel Green, diretor do Instituto da Rússia do King's College, de Londres, em um webinar promovido pelo britânico Instituto Internacional de Estudos Estratégicos.>
Naquele ano, Putin enfrentou uma onda de protestos antes de sua volta à Presidência, quando era premiê do governo tutelado de Dmitri Medvedev, seu pupilo hoje caído em desgraça por impopularidade. O motivo havia sido a ostensiva fraude nas eleições parlamentares de 2011.>
Segundo informou o consórcio de partidos liberais liderado pelo Iabloko (maçã), pesquisas independentes registraram um empate em Moscou (51% sim, 49% não) e uma derrota de Putin na sua São Petersburgo natal (56% não, 44% sim). Mas o resultado geral, admitem, seria favorável ao Kremlin de todo modo.>
Ou seja, venceu também a apatia do eleitorado com a falta de opções num sistema político dominado por Putin desde 1999, quando tornou-se premiê pela primeira vez - de lá para cá, são mais quatro mandatos presidenciais, além do período Medvedev como primeiro-ministro.>
Uma definição bruta foi dada pelo mais rude aliado de Putin, o presidente tchetcheno, Ramzan Kadirov. "Nós precisamos eleger Putin como presidente vitalício. Quem mais está aí para substitui-lo?', questionou na rede social VKontakte, o Facebook russo.>
Apesar do cinismo da pergunta, do líder de um lugar em que o comparecimento ao plebiscito foi de 90%, a resposta emudece mesmo membros da oposição. O mais popular dele, o blogueiro Alexei Navalni, não tem apoio eleitoral fora das redes e dos grandes protestos que ajuda a organizar.>
Mesmo se tivesse, o sistema putinista se encarregou de evitar o risco ao desqualificá-lo para concorrer em 2018 a presidente sacando uma condenação judicial duvidosa. Navalni apoiou um boicote malsucedido ao referendo.>
"Putin ganhou tempo. Se tivesse de lidar com um processo sucessório, acharia difícil. Agora, tudo está em aberto. Mas é visível o gradual endurecimento do controle do regime", afirma Green.>
O referendo, um amontoado de 206 emendas para mudar 14 artigos da Constituição russa, é um exemplo disso. Lá estão medidas como a alteração da composição do Supremo local, a possibilidade de demissão de juízes pelo presidente, e uma série de valores conservadores entronizados na Carta.>
Nesse último item, dois chamam a atenção. É possível agora criminalizar quem defender uma narrativa que não coadune com a "verdade histórica", naturalmente em sua versão putinista triunfal, da Rússia.>
Dispensável dizer que daí para interpretar estudos acadêmicos como dissenso será um passo. E a Constituição agora afirma que apenas homem e mulher formam casamentos, dificultando qualquer mudança legal que venha a permitir a hoje proibida união homossexual.>
"Mas ele não pode simplesmente desligar a internet, isso alienaria as pessoas", pondera Green.>
O problema para Putin agora é lidar com a galopante crise econômica do país, o terceiro mais atingido no mundo pela Covid-19, e a insatisfação popular --sua aprovação está em altos 59%, a menor de sua carreira.>
Curiosamente para um governo autocrático, no esquema russo o presidente precisa manter seu apoio em alta para que as elites a seu redor o apoiem.>
A política externa, simbolizada pelas aventuras militares na Ucrânia e na Síria, além de uma coleção de armas nucleares para assustar o Ocidente, não parece hoje dar gás a Putin no campo doméstico.>
Isso, para analistas como Denis Volkov, do instituto de pesquisas Levada, obriga o foco nos problemas em casa. E com o petróleo que alimenta a economia russa com preço instável devido à queda de demanda pela pandemia, as coisas ficam difíceis: Putin já prometeu aumento de imposto sobre mais ricos.>
"Eles não sabem como resolver a questão da sucessão. A oposição hoje mora no sistema, e um sucessor teria de ser alguém de dentro, que mantenha a elite e possa ganhar eleições", diz o cientista político e sociólogo Green.>
No longo prazo, acredita, Putin foi razoavelmente bem-sucedido em construir seu semi-autoritarismo. "É um fenômeno novo, então ele tem de observar coisa semelhantes no mundo, na Turquia, em Israel, em Hong Kong", afirmou.>
Ele não descarta, contudo, que em algum momento o líder que poderá ficar até os 83 anos no Kremlin simplesmente não esteja mais no poder.>
Enquanto isso, a face que o mundo identifica como a da Rússia permanecerá sendo a de Vladimir Vladimirovitch Putin, o czar do século 21.>
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