Publicado em 6 de agosto de 2020 às 11:44
Uma poção para os olhos usada há 1.200 anos pode ajudar os cientistas em sua batalha contra a resistência de bactérias a antibióticos atuais. A receita, encontrada em um tratado de medicina medieval, foi reproduzida e testada por cientistas da Universidade de Warwick, em experimento publicado na última semana no Scientific Reports, da revista Nature. >
Feito à base de cebola, alho, vinho e sais biliares, o preparado se mostrou seguro para células humanas e eficaz para combater biofilmes multicelulares -colônias de microrganismos que funcionam como uma proteção para as bactérias, reduzindo a ação dos antibióticos atuais. O tártaro dos dentes é um exemplo de biofilme, mas há outros especialmente difíceis de tratar, como o de úlceras nos pés de pacientes diabéticos.>
O remédio, que faz parte do "Bald's Leechbook" -"livro de prescrições médicas de Bald", manuscrito compilado no século 9º durante as reformas educacionais do rei dos anglo-saxões Alfredo, o Grande-, foi recuperado e testado por pesquisadores do Ancientbiotics.>
O grupo foi formado em 2015 por microbiologistas, químicos, farmacêuticos, analistas de dados e medievalistas de universidades britânicas e americanas -entre elas Warwick, Nottingham, Coventry e Universidade da Pensilvânia- em busca de alternativas antigas para a resistência microbiana contemporânea.>
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Em culturas em laboratório, o unguento de Bald se mostrou eficaz contra cinco diferentes bactérias (Acinetobacter baumani, Stenotrophomonas maltophilia, Staphylococcus aureus, Staphylococcus epidermidis e Streptococcus pyogenes) encontradas em biofilmes que infectam diabéticos. Por causa da resistência desses biofilmes aos antibióticos atuais, a infecção pode levar à amputação dos pés, para impedir que os patógenos invadam a corrente sanguínea.>
A pesquisa mostrou que o efeito antibacteriano depende de que todos os ingredientes estejam combinados, nas especificações exatas da receita anglo-saxônica, incluindo um período de ativação de nove dias. A alicina (presente no alho), por exemplo, tem ação antibacteriana, mas o bulbo sozinho não tem atividade contra biofilmes, diz a professora de Warwick Freya Harrison, coautora do artigo.>
Segundo Harrison, muitos antibióticos usados hoje derivam de compostos naturais, mas o trabalho recém-publicado abre uma outra vereda para a exploração não só de substâncias isoladas mas da composição entre elas.>
O foco principal do Ancientbiotics é em fórmulas medievais, mas o grupo colabora com pesquisadores que analisam remédios anteriores e posteriores, afirma Harrison: "Algo em que os especialistas em humanidades da equipe estão especialmente interessados é comparar remédios e ingredientes em textos médicos de diferentes épocas e lugares, para ver qual conhecimento foi transmitido".>
Segundo ela, não há dúvidas de que algumas das receitas do "Bald's Leechbook" foram copiadas da medicina antiga ou têm paralelos em livros de outros tempos e povos. A biblioteca de Londres descreve fórmulas extraídas de autores gregos e romanos antigos, como Alexandre de Tralles (morto em 605).>
Além do volume anglo-saxônico, que passa por sua segunda tradução, "Lilium Medicinae", uma compilação feita em 1305 em latim por um médico francês, também é fonte para o grupo. A partir de uma versão para o inglês antigo, a especialista em manuscritos medievais Erin Connelly criou uma base de dados com as combinações de substâncias sugeridas pelo livro, que descreve cerca de 6.000 ingredientes e 359 receitas para 110 doenças.>
Não é um trabalho simples, já que o texto usa palavras e grafias diferentes para os mesmos ingredientes. Funcho, por exemplo, aparece como "fenel", "feniculi", "feniculum", "marathri", "maratri" e "maratrum", descreve um artigo da MIT Technology Review. Além disso, como pode haver ingredientes ativos diferentes dependendo da parte da planta usada, é preciso distinguir raiz, folha, seiva ou semente.>
As bases de dados criadas a partir das obras medievais serão fundamentais para ajudar o grupo a identificar quais remédios históricos são os mais promissores, já que os experimentos em laboratório consomem tempo e dinheiro, diz Christina Lee, da Universidade de Nottingham, especialista no aspecto histórico do trabalho.>
Lee, Connelly e o cientista de computação Charo del Genio, de Coventry, vão usar algoritmos de redes complexas para afunilar a lista de fórmulas com potencial, a partir de associações não aleatórias de ingredientes. Tanchagem (plantago), mel, romã e vinagre, por exemplo, aparecem sistematicamente combinadas em receitas do "Lilium", mostrou o estudo feito na Pensilvânia.>
Harrison diz que há um longo caminho entre as descobertas do Ancientbiotics e a produção de um remédio para uso médico: é necessário identificar as moléculas responsáveis pelo efeito antimicrobiano, descobrir qual dose delas é necessária para tratar infecções e mostrar que essa dose não causa efeitos colaterais adversos, em uma série de testes em fases no laboratório e nas pessoas.>
Além disso, é preciso que mostrar que a preparação traz benefícios médicos suficientes para compensar o custo de fabricá-lo e fornecê-lo.>
Mas existem alguns produtos naturais empregados para tratar infecções ao longo da história que são usados como antimicrobianos seguros e eficazes, segundo a cientista.>
Um exemplo é o mel, usado pelo Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido para tratar infecções por queimaduras. Outro é o medicamento antimalárico artemisinina, que vem do absinto vegetal (Artemisia annua) e foi desenvolvido depois que o cientista Tu Youyou encontrou um tratamento antigo chinês que o utilizava.>
"O mais empolgante para nós é que o 'Bald' também indica absinto para tratar a malária", diz Harrison.>
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