Com mais de 60% da população formada por pretos e pardos, o Espírito Santo está longe de ver essa representação na política capixaba. A participação de negros nas disputas eleitorais até apresenta uma curva ascendente, mas não se traduz totalmente em cadeiras ocupadas no Legislativo ou no Executivo, isto é, eles têm menor presença nos centros do poder e da tomada de decisões. No Dia da Consciência Negra, que propõe uma reflexão sobre os valores desse povo, fica a pergunta: qual o espaço destinado aos negros e quais as chances de o cenário mudar?
Nas duas últimas eleições — as gerais, em 2022, e as municipais, no ano passado — foram eleitos cerca de 40% de pretos e pardos em cada disputa, conforme registros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que passou a exigir a autodeclaração de cor ou raça apenas a partir de 2014. Naquele ano, somente 28,88% dos candidatos negros conseguiram se eleger.
“Há algum avanço na entrada, mas ainda há sub-representação nos espaços de maior decisão. Ainda não conseguimos representar de maneira proporcional à realidade étnica do Espírito Santo a efetiva participação de negros e indígenas nesses cargos”, analisa Maria Gabriela Verediano, produtora do projeto de educação antirracista Descolonize e mestranda em Relações Étnico-Raciais, citando, como exemplo, “o parlamento estadual, majoritariamente masculino e branco”.
A Assembleia Legislativa do Espírito Santo é formada por 30 deputados e, na disputa mais recente, elegeu 10 negros, ou seja, pouco mais de 30% se declararam pardos ou pretos. Houve algumas trocas de cadeiras no decorrer da legislatura, mas em nada alterou a fatia que coube a esse grupo.
A bancada capixaba na Câmara Federal, por sua vez, está fugindo à regra e mais da metade dos parlamentares do atual mandato se considera negra. O cientista social João Victor Santos, pesquisador do Núcleo Participação e Democracia (Nupad) da Ufes, conta que realizou um estudo nacional sobre a trajetória dos deputados federais e observou que, em 2018, houve um "boom" de candidatos negros no espectro político de direita.
“Quando pegamos o recorte só de pretos, eles são eleitos majoritariamente pela esquerda, são mais do campo progressista. Mas, se falamos de negros no geral (incluindo os pardos), há candidatos e eleitos tanto na esquerda quanto na direita”, constata. E é o perfil dos deputados federais do Espírito Santo: cinco que se declararam pardos estão à direita no tabuleiro político e somente Jack Rocha (PT), preta, é de esquerda.
Pelos registros históricos, conforme pontua a Coordenadoria da Gestão da Informação (CGI) do Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo (TRE-ES), o primeiro candidato negro eleito no Estado foi Mário Gurgel. Em 1950, ele foi o mais votado em Vitória e conquistou uma vaga na Câmara de Vereadores.
"A eleição consagradora para seu primeiro mandato como vereador não significou o fim dos preconceitos com relação a Mário Gurgel por parte dos conservadores. Na verdade, estes não engoliram com facilidade a retumbante vitória do candidato 'preto, pobre e comunista'", diz trecho do livro "O menino da Ilha", escrito por Antonio Gurgel sobre a trajetória do pai.
Gurgel exerceu o mandato por duas vezes no Legislativo municipal, foi prefeito da Capital e, depois, se elegeu para a Assembleia Legislativa, onde se tornou, também, o primeiro negro a ocupar a presidência. Mais tarde, concorreu e ocupou uma vaga na Câmara Federal, mas perdeu o mandato e teve os direitos políticos cassados, em 1969, durante a ditadura militar.
O preconceito racial vivenciado por Gurgel pode também ter encoberto a candidatura e eleição de outros negros que eventualmente o antecederam.
"Salienta-se a possibilidade de ter existido outro anterior a Mário Gurgel que não esteja nas fontes oficiais, visto a discriminação e o preconceito racial histórico existente no nosso país e o apagamento de determinadas memórias. Se declarar negro, no período em análise da pesquisa, era também uma questão sensível a muitos. Nesse contexto, talvez por sua trajetória política e militância no movimento negro, o seu nome apareça em destaque", observa a Coordenadoria da Gestão da Informação do TRE-ES.
Gurgel abriu caminho para outros negros, de maior ou menor expressão política. Um dos mais emblemáticos foi Albuíno Azeredo, o primeiro governador negro a ser eleito no Espírito Santo, em 1990, e, segundo o historiador e professor aposentado da Ufes Estilaque Ferreira dos Santos, um dos primeiros do país escolhidos democraticamente.
Caminhos abertos, mas os obstáculos persistem. Para Estilaque Ferreira, alguns deles ainda como resquícios do período de escravidão, que impôs uma realidade de menos oportunidades e de marginalização de negros. "Uma situação ainda vigente no país, mas que espero que seja superada. Meu sonho é que o Brasil seja um país multirracial."
Agora, embora o racismo esteja presente no cotidiano dos negros e, inegavelmente, tenha impacto na participação política como demonstrado ao longo da história, o cientista social João Victor dos Santos diz que, atualmente, com os dados disponíveis, não é possível afirmar que a baixa representatividade está relacionada a um voto racista. Antes disso, há outras barreiras que dificultam candidaturas de pretos e pardos e, consequentemente, sua eleição.
"Há um longo processo até esse político se tornar candidato. Até o nome entrar na urna, passa por barreiras partidárias; para o nome ser competitivo, tem que ter influência dentro do partido, porque a distribuição de recursos financeiros não é igualitária, quem define é o presidente. Então, há candidaturas negras com financiamento muito baixo, e não ter dinheiro dificulta muito a eleição", pontua.
Maria Gabriela, do Descolonize, acrescenta que, para dar uma chance real para negros se elegerem, é preciso combinar políticas afirmativas com mudanças estruturais.
"Não basta apenas ter mais candidatos negros, é preciso garantir que eles recebam financiamento adequado, tempo de propaganda, apoio logístico e segurança para fazer campanhas competitivas. Acredito também que é preciso pensar em uma forma de organização política, apesar dos boicotes internos dos partidos. Pensar em campanhas com arrecadação de fundos de maneira comunitária pode ser uma saída", opina.
Além dos custos, aponta Maria Gabriela, existe toda uma trajetória para formação de líderes nas comunidades, que não é realizada de um dia para o outro. É o caso de Ana Paula Rocha (Psol) em seu primeiro mandato na Câmara de Vitória. Filha de lideranças comunitárias — Isaías Santana e Maria da Penha — e irmã de Lula Rocha, ligado à área de direitos humanos e que morreu há três anos, a vereadora esteve engajada em lutas e movimentos sociais muito antes de ocupar uma cadeira no Legislativo.
"É importante estar agora nesse espaço, construir política a partir do lugar que a gente pisa. A maioria dos negros, que mora em periferias, constrói soluções coletivas e comunitárias. É fundamental que também ocupem lugares de decisão para propor e não apenas ser alvo das políticas públicas", defende Ana Paula, ressaltando que ser mulher e negra exige um enfrentamento diário da violência política de gênero e raça imposta por aqueles que não a querem em posição de poder.
Apesar dos passos curtos na caminhada para ampliar a participação dos negros na política, há movimentos que podem aumentar a representatividade de pretos e pardos. Uma das medidas é a Emenda Constitucional 133, promulgada no ano passado, que define novas regras para os partidos aplicarem recursos destinados a candidaturas negras.
É fato que houve uma manobra no Congresso Nacional depois de as legendas descumprirem a aplicação mínima para esse grupo nas eleições de 2022, quando, por determinação do TSE, os repasses do Fundo Eleitoral a negros e mulheres deveria valer em dobro na hora de calcular a distribuição dos recursos.
O texto da nova emenda perdoa os débitos dos partidos que não atenderam a essa exigência, mas, para que a dívida seja de fato cancelada, esses valores deverão ser investidos em candidaturas de pretos e pardos nas quatro eleições a serem realizadas a partir de 2026. A emenda ainda obriga os partidos políticos a destinarem 30% dos recursos do Fundo Eleitoral e do Fundo Partidário às candidaturas de negros — medida implementada desde a eleição de 2024.
"Ter uma pessoa negra em uma posição de poder significa romper com uma lógica histórica em que decisões sobre a maioria da população capixaba eram tomadas quase exclusivamente por pessoas brancas. É a possibilidade real de produzir políticas públicas a partir de outras vivências, outras referências e outras prioridades, especialmente em um Estado onde negros são maioria, mas continuam minoria nos espaços de decisão", conclui Maria Gabriela.
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