Estamos em novembro. Neste mês, diversas ações voltadas para questões raciais são promovidas em todo território nacional, sendo uma extensão das celebrações inicialmente ocorridas apenas no dia 20.
Para os desconectados, no início da década de 1970, universitários gaúchos fundaram o Grupo Palmares, um coletivo criado para atuar nas frentes ligadas às pautas raciais no Rio Grande do Sul. Foi desse grupo que partiu a iniciativa de se criar um dia voltado exclusivamente para se discutir as questões raciais.
O 13 de maio, data da Abolição da Escravatura, foi descartado por se tratar de um fato que não gerou inclusão/reparação efetiva para a população negra brasileira. Foi escolhido, então, o 20 de novembro, data que, segundo a história, morreu Zumbi dos Palmares, o maior líder quilombola de nossa história, cuja trajetória de luta e resistência simboliza os ideais norteadores dos objetivos ideológicos do coletivo.
Com o surgimento do Movimento Negro Unificado, fundado em 1978, a data ganhou mais popularidade. Foi neste mesmo ano que o escritor Osvaldo de Camargo propôs que o 20 de novembro fosse o Dia da Consciência Negra.
Através da Lei 12.519/2011, o Dia da Consciência Negra foi instituído como uma data nacional e da Lei nº 14.759/2023 como feriado em todo território brasileiro.
Mas, para entender a síntese real da data, é preciso entender a história.
O povo preto chegou às Américas pelo tenebroso comércio escravista. Suas bases eram formadas por um processo de total desumanização daqueles indivíduos sequestrados. Deles eram tirados a terra, os familiares, o nome, a religião e qualquer outro elo de pertencimento ao mundo, para que se sentissem sub-humanos e aceitassem aquele estado de servidão eterna. Assim, eram meras mercadorias. Etiquetados. Analisavam seus corpos como um produto na prateleira. Eram transportados como uma carga qualquer e, em alguns casos, marcados com ferro quente para exibir de quem eram propriedade.
Inventariado: José Ribeiro Soares*
Data: 13-2-1874
Inventariante: Francisca Clara de Jesus Soares.
Escravos – Domingo, matrícula 1718, avaliado em um conto e trezentos, crioulo, sem indicação de idade. Ana Rita, sua mulher, matrícula 1720, avaliada em novecentos mil réis, crioula, com trinta anos. Francisco, matrícula 1719, avaliado em novecentos mil réis, crioulo de 16 anos. Benedicto, matrícula 1721, avaliado em novecentos mil réis, crioulo de 23 anos. E Miguel, de cor calva, matrícula 1722, avaliado em oitocentos mil réis, brasileiro, com 11 anos de idade.
*Escravizados presentes em um inventário de um senhor de escravos capixaba. Retirado de: Torta Capixaba - Renato Pacheco.
Com o passar dos anos, regados a sangue jorrado pelas crueldades do sistema, ações de impedimento da inserção dos negros na sociedade foram traçadas. A primeira lei de educação do país, por exemplo, de 1837 era clara ao dizer:
“São proibidos de frequentar as escolas públicas: Primeiro: pessoas que padecem de moléstias contagiosas. Segundo: os escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos”
Impedidos de ter o básico para a inserção e ascensão, a terra, possível meio de subsistência e sobrevivência, também foi vetada. A Lei de Terras de 1850, aprovada no mesmo mês e ano da Lei Eusébio de Queiroz, que proibia o tráfico de escravizados, já refletia o temor da elite escravocrata de ter pessoas negras ascendendo socialmente. Em vigor, ela dividiu o Brasil em grandes latifúndios, impedindo pessoas de poucas posses de acessarem pequenos pedaços de terra.
A coisa ainda pioraria em 1890. Com a escravidão já extinta, aquela grande massa de negros e negras, sem acesso à educação e à terra, jogados na sociedade após anos de servidão forçada e fadados à marginalidade, foram perseguidos pela Lei dos Vadios e Capoeira. Grosso modo, essa lei criminalizava aqueles que perambulavam pelas ruas, sem trabalho ou residência comprovada e - aqui a curva jurídica que objetivava atingir ainda mais diretamente a população negra - jogando ou portando objetos relativos à capoeira!
Basicamente, o ser negro no Brasil nos séculos anteriores estava definido em ser escravizado, ou morrer de fome, ou ser criminizalizado.
Foram essas ações, milimetricamente orquestradas por uma camada da sociedade, que edificaram a desigualdade racial em que vivemos, reflexo de um racismo que está presente na estrutura de nossa sociedade. É essa realidade, privilegiante para uns e oitocentista para outros, que precisa ser discutida. Precisa ser bradada, exposta e escancarada como ferida aberta pelos grilhões escravistas que ainda não cicatrizaram diante das chibatadas que ainda insistem em estalar, mesmo que de forma velada.
Apesar de usarmos termos como “celebração” e “feriado”, é importante salientar que o Dia da Consciência Negra tem como síntese principal exatamente essa ampla discussão. É através dela que traçaremos diretrizes e ações afirmativas para materializar um país que também será do negro. De fato e de direito.
Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.
