Em meu primeiro escrito nesta coluna falei sobre uma cidade que faz carnaval durante os 365 dias do ano, extrapolando os limites temporais destinados à data e vivendo intensamente as minúcias que resultam nos grandiosos desfiles apresentados na passarela da folia. Como disse lá nos confins de fevereiro deste ano, um carnaval começa imediatamente após o fim do anterior, formando um ciclo constante de imersão carnavalesca para aqueles que tratam a arte como um elemento vital para suas vidas.
Recentemente, uma dessas etapas que compõem a preparação carnavalesca foi encerrada. Ao anunciar o tema “Cricaré das Origens. O Brasil que nasce em São Mateus”, que exalta a história e cultura do município de São Mateus, a Rosas de Ouro, escola de samba do município da Serra, finalizou a lista dos temas que serão abordados na avenida no próximo ano pelas agremiações do Grupo Especial do carnaval capixaba. As notícias que publicaram a escolha da escola, ao detalhar sobre a verba que será enviada pela Prefeitura de São Mateus, abriram as jaulas dos vociferantes de ocasião, que não perdem uma oportunidade de destilar todo seu ódio a elementos culturais.
Nada de novo em uma sociedade composta por alguns que costumam subjugar tudo aquilo que vem das camadas populares, amparados por um conjunto de normas e regras que, curiosamente, adapta-se aos seus interesses. Não costumo destinar tempo dando ibope às investidas do tipo, mas como a cruzada dos intolerantes é movida por desinformação, abrir as portas do universo carnavalesco é forma de combater a perseguição.
A verba destinada às escolas de samba é mesmo um dinheiro jogado como confete para custear o desfile de uma agremiação? Se fossem, não seria problema, tendo em vista que muitas outras festas também são subvencionadas por cifras do tipo, mas, não. Não são! A começar pelos rasos argumentos dos promotores de internet, o dinheiro empregado nas escolas de samba não é retirado e nem poderia ser aplicado em outros setores como saúde e educação. São verbas já destinadas para o setor da cultura ou do turismo, e tal ação é pautada na interpretação de que elementos culturais como eventos, grupos, coletivos e práticas são dotados de potencialidades econômicas e, consequentemente, de retorno financeiro.
Usando o próprio carnaval como exemplo, segundo o portal Capixabices, referência em informações carnavalescas, para os desfiles de 2025 o governo do Espírito Santo investiu R$ 2,5 milhões, entre emendas parlamentares e recursos do Tesouro Estadual. Já a Prefeitura de Vitória, tendo como base o mesmo carnaval de 2025, projetou a movimentação de cerca de R$ 40 milhões e a geração de 6 mil empregos diretos e indiretos. Tais dados comprovam que as verbas públicas aplicadas no carnaval e nas escolas de samba são, na verdade, um investimento que gera um considerável retorno aos cofres públicos e positivas devolutivas àqueles que se empregam em suas atividades.
Confesso, porém, que me incomoda bastante todo esse digladiar de números e quantias, como se o povo do carnaval devesse, anualmente, se defender das perversas investidas habituais, expondo a sua capacidade de multiplicar os trocados dados pelas esferas públicas. Usar argumentos econômicos apequena a principal virtude de uma escola de samba, virtude essa que, por si só, já justificaria todo e qualquer investimento: sua potência social!
Como disse anteriormente, o universo do carnaval de escola de samba não se resume aos desfiles e suas noites camaróticas e midiáticas. As quantias arrecadadas pelas escolas de samba – e aqui, incluem-se também as que não são públicas, já que essas estão longes de cobrirem todos os gastos feitos durante o ano – custeiam um conjunto imenso de ações que as agremiações realizam em suas comunidades e que reverberam em positivas devolutivas sociais e coletivas.
Potencialidade que, importante salientar, não foi desenvolvida visando uma prestação de contas das verbas dadas pelo Estado. Foi, na verdade, adquirida desde o nascimento das escolas, em um cenário de constante abandono desse mesmo Estado, onde elas emergiram como equipamento de amparo, assistência e pertencimento a um povo que não se via contemplado pelos conceitos de cidadania e sociedade igualitária.
Mas retornando às engrenagens das agremiações: o que é visto nas noites de desfile são apenas a consagração de ensaios, encontros, reuniões, palestras, enfim, de diversas ações que exercem competências educativas, inclusivas e assistencialistas. Quadra de escola de samba, terreiro firmado como chão sagrado para os componentes da escola, é um espaço que constantemente é destinado para ações sociais como consultas médicas, arrecadação de alimento, palestras e cursos profissionalizantes ou simplesmente um ambiente de sociabilidade, localizado em territórios que as políticas de fomento ao lazer não costumam chegar com a mesma frequência que chegam em outros territórios da cidade.
Os enredos e seus filhos sambas-enredo, quando discutidos e cantados, propagam conhecimento histórico e cultural, de forma leve e construtiva. Quem se permitir a tal experiência no carnaval capixaba deste ano, aprenderá sobre a história das cidades de Guarapari e São Mateus; sobre a epopeia da Princesa Teresa da Baviera em terras capixabas no século XIX; sobre o João Bananeira, símbolo da cultura e resistência do povo de Cariacica; sobre as culturas das festas juninas, preservação ambiental, elementos das religiões de matrizes africanas e diversos outros temas presentes em nosso cotidiano.
Os ensaios e outros encontros e eventos, na mesma medida que são momentos de preparação e construção do carnaval, são, também, experiências de sociabilidades que amenizam gritantes fragilidades sociais presentes no cotidiano dessas comunidades. A turma da bateria, que ensaia semanalmente para ditar o ritmo da escola, encontra no agrupamento um sentido de coletividade que contrapõe e oferece alternativa às seduzentes e perigosas outras filiações que as rondam.
Passistas que sambam, no mais autêntico reflexo corporal da arte citada, reproduzem a liberdade de padrões estéticos e de gênero que costumam imobilizar práticas simples do cotidiano de muitos deles, que encontram na ala a ideologia emancipatória para uma vida com menos imposição. O simples cantar de um samba na quadra, por muitas vezes, expele tristezas, angústias e frustrações geradas pelo ritmo do mundo, sendo uma terapia eficaz contra os tempos adoecedores que vivemos.
Críticos de ocasião jamais entenderiam esse universo de autoproteção e resistência. Os que entendem, deixam de ser críticos. Alguns até entendem, mas preferem permanecer na crítica. Esses são os que, chegado o grande dia, aparecem mendigando ingressos para os badalados camarotes e áreas vips, para contemplar de perto o que passaram o ano todo apedrejando. Compreensível.
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Até mesmo os mais ferrenhos dos algozes merecem a dádiva de presenciar a esplêndida capacidade do nosso povo de transformar perseguições, privações e adversidades em um dos maiores espetáculos populares do Espírito Santo.
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