É historiador e mestre em Estudos Urbanos pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Pesquisa a cultura capixaba e manifestações populares brasileiras. É comentarista da CBN Vitória, no quadro Histórias do Cotidiano

Cosme e Damião merecem voltar a ser festejados pelas crianças como antigamente

Estratégia de busca, furadas de filas e até falsidade ideológica… tudo valia para acumular o máximo de guloseimas oferecidas. As senhoras que não tinham condições de realizar uma distribuição completa faziam as famosas “galinhas gordas”

Vitória
Publicado em 04/09/2025 às 05h00

Setembro é um mês cheio de significados.

Dos seus trinta dias, alguns deles são destinados às mais diversas causas e celebrações, cuja essência está presente em nosso cotidiano. Conscientização de causas como prevenção ao suicídio, proteção à Amazônia e necessidade de alfabetização são alguns exemplos. Nos dias setembrinos também celebra-se os irmãos e irmãs, a Independência do Brasil e o massacre indígena que culminou na fundação da cidade de Vitória.

Para os que têm a vida ritmada por tambores sagrados, setembro é tempo de doces, balas, brincadeiras e pureza das crianças. Em terreiros do Brasil as giras são dos erês, falanges espirituais infantis que atuam como mediadores entre os humanos e as divindades superiores, exalando sabedoria e energia de forma alegre e inocente. A razão de o mês de setembro ser destinado aos erês é que, em seu vigésimo sétimo dia, as ruas são — ou pelo menos eram — tomadas por crianças, em uma saga alegre de busca por doces e balas. É o dia de São Cosme e São Damião!

Cosme e Damião eram irmãos gêmeos e médicos que viveram no século III. As narrativas dizem que não aceitavam qualquer tipo de pagamento por suas ações de caridade e, por isso, tornaram-se bastante populares. A fama dos gêmeos correu chão não apenas por causa da bondade feita em forma de trabalho gratuito, mas também por relatos de milagres de cura realizados, principalmente em crianças.

Quando iniciou-se a perseguição do imperador romano Diocleciano contra os cristãos, visando ao resgate das tradições romanas, Cosme e Damião foram presos e obrigados a negar a fé em Cristo. Como não aceitaram, foram submetidos a torturas extremas como punição. Reza a lenda que seus corpos apresentaram-se imunes aos castigos, sendo resistentes a queimaduras, afogamentos e outras investidas para forçar o convertimento religioso dos gêmeos. Sem saída, Diocleciano ordenou que decapitassem Cosme e Damião, pondo fim em suas vidas terrenas.

O fim da saga carnal de Cosme e Damião não findou seu legado e também suas ações em prol da saúde do povo. Mesmo após a morte, relatos afirmavam que os gêmeos médicos se materializavam, quando chamados, e curavam crianças enfermas.

São Cosme e Damião
São Cosme e São Damião. Crédito: Wellcome blog post/Wikimedia Commons

Pelos feitos em vida e pelas lendas surgidas no post mortem, o culto aos santos sempre esteve muito ligado a pedidos de cura e restauração plena da saúde. No Brasil, território fértil para o surgimento de práticas populares, a devoção aos santos médicos se reproduziu baseada em um costume praticado por eles em consultas.

Segundo as narrativas, quando uma criança estava muito agitada ou chorando bastante, eles davam uma bala ou doce para acalmá-las. Inspirando-se nisso, o povo brasileiro criou a tradição de homenagear Cosme e Damião dando saquinhos de balas para a criançada, sempre aos 27 de setembro, data destinada aos santos. O ato de dar bala normalmente está atrelado ao cumprimento de promessas feitas em situações de enfermidades, sendo um agradecimento aos santos pela saúde restaurada.

Com o aumento das religiões neopentecostais e a consequente demonização das práticas que não pertencem ao seu raio de dogmas, os festejos de Cosme e Damião vêm diminuindo bastante a cada ano. Para os que sabem procurar e os que têm vivo na memória a vitalidade dos dias 27 de outrora, as cenas são de plena alegria e felicidade. Levas imensas de crianças saíam às ruas, de mochila nas costas, buscando casas que cumpriam a tradição de entrega de balas.

Doces, balas, pirulito
Doces, balas, pirulito. Crédito: Pixabay

Estratégia de busca, furadas de filas e até falsidade ideológica… tudo valia para acumular o máximo de guloseimas oferecidas. As senhoras que não tinham condições de realizar uma distribuição completa, com saquinhos recheados de doces de variados tipos, faziam as famosas “galinhas gordas” em que se joga balas pro alto e “salve-se quem puder”.

Em nossa história, destaco Dona Judith, de Caratoíra, que distribuiu bala por mais de cinquenta anos, em cumprimento de promessa após seu filho ser raptado com apenas oito anos de idade. Sem esquecer, obviamente, de Dona Dadá, que incorporada do seu erê Pedrinho, realizava grandes festas em sua casa em Maruípe. As divindades a agraciaram com dois netos gêmeos e um terceiro que tornou-se médico.

Por aqui, terras brasileiras, o culto a Cosme e Damião fundiu-se com o dos orixás Ibejis, divindades também irmãs gêmeas, que manifestam-se como crianças. São símbolos de saúde, alegria e enganam a tristeza e a morte através de brincadeiras e peripécias comuns da infância.

Movido por essa fé que Edivan Alves, mais conhecido como Baiano do Acarajé, distribui carurus - comida ofertada para os ibejis no candomblé - todo dia 27 de setembro na Costa Pereira, em um evento que tornou-se uma verdadeira gira pública em um dos espaços mais tradicionais do Centro Histórico de Vitória.

Em tempos de ruas sem vidas, sujeitos amargurados e alastramento de um intolerante discurso divino, aqueles que ainda ousam cultuar e festejar Cosme, Damião, os erês e os Ibejis estão prestando um imenso serviço para a construção de uma sociedade menos adoecida.

Salve as crianças!

Formas de contribuir com festas e distribuições:

Régis Rey - Organizador da distribuição do Pega no Samba. Pix: 27 99502-3134

Distribuições em Vitória:

Caruru dos Meninos - Praça Costa Pereira, Centro de Vitória. Dia 27, às 14h

Quadra da Escola de Samba Pega no Samba, Consolação, Vitória. Dia 27, às 9h

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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