Os mais atentos, quando passam pelo Centro Histórico de Vitória, reparam que, aos pés de um dos maiores símbolos da história religiosa e administrativa do nosso Estado, o Palácio Anchieta, encontra-se uma estátua de uma mulher, cabisbaixa, descalça e retratando um movimento de caminhada.
Na praça presidente Franklin Delano Roosevelt — sim, esse é o nome do espaço, uma homenagem a um ex-presidente dos Estados Unidos —, Dona Domingas foi eternizada em imagem, mas sua história enfrenta batalhas de afirmação enquanto seu monumento representa toda trajetória de um povo que sofreu as mais severas privações.
Mulher e negra; durante a segunda metade do século XX acreditava-se que tinha mais de cem anos, Dona Domingas tornou-se um dos personagens principais do cotidiano da cidade de Vitória, no Espírito Santo, ao vagar diariamente pelas ruas coletando materiais que julgava ter um valor de revenda. Sempre calada, quieta, mirando o chão e seus objetivos impostos pelo sistema.
Na década de 1970, foi eternizada através da inauguração de um monumento que retrata seu corpo em tamanho real, localizado no Centro Histórico de Vitória.
De alguma forma, Dona Domingas, em vida e em memória, é um retrato infeliz do que é ser negro no Espírito Santo e no Brasil. Sua história, precarizada por pouquíssimos registros, foi construída sobre relatos de quem conviveu ou apenas a viu passar em sua procissão solitária e diária.
Uma história cheia de incertezas.
“Ex-escravizada”, “postura curvada pois tomou uma paulada nos tempos de escravidão”, “sempre descalça pois não se adaptou ao uso de sapatos após a liberdade”, “única estátua do mundo de uma mendiga” são algumas das sentenças dadas a ela nas fábulas criadas pelo imaginário popular.
Inerente às incertezas, algumas certezas são possíveis de extrair. Dona Domingas foi uma mulher negra que viveu durante o período de escravidão e, posteriomente, em uma sociedade teoricamente livre e racialmente segregadora. Como tal, sentiu na pele os mais severos sofrimentos impostos à população negra.
Nunca foi mendiga, como alguns racistamente a tacharam ao reproduzir a infundada “curiosidade” de que “Vitória é a única cidade do mundo em que existe uma estátua de uma mendiga!”. Residia, na companhia de sua família e das fragilidades comumente direcionadas às comunidades periféricas, no Morro do Pinto, no bairro de Santo Antônio, Vitória. Era devota fervorosa do santo de mesmo nome. Na memória de moradores da região, habita a narrativa de que exercia sua fé sempre suplicando pela alma dos escravizados que padeceram no sofrimento.
Na memória dos moradores de Vitória, foi uma senhora que desfilava suas dificuldades pelas ruas da cidade, carregando um peso desumano para sua realidade, no único propósito de obter o sustento básico para a sobrevivência de sua família.
Tais andanças heroicas e injustas deram a ela um lugar no panteão dos tipos populares agraciados pela memória urbana. Na década de 1970, anos depois de seu falecimento (1966), foi inaugurado um monumento retratando seu corpo em tamanho real, reproduzindo uma de suas caminhadas, paradoxalmente localizado aos pés do palácio do governo, um dos símbolos do sistema que lhe impôs o sofrimento em vida. Atualmente, o único monumento de uma mulher negra da cidade encontra-se em estado de abandono, sem contar sequer com uma placa informativa em seus arredores.
Quem não é da região ou não ouviu dos mais velhos sobre ela provavelmente afoga-se em dúvidas básicas que não circundam monumentos de ditadores, médicos e heróis de apenas uma parcela da história.
Quem era? Por que está aqui? O que ela fez?
Sintomas de um cenário de apagamentos que não representa alterações quando olhamos passado e presente através de uma ótica negra.
Não é comum, por exemplo, identificar a presença do negro na formação da identidade do Espírito Santo que comumente é esplanada e exaltada. Os negros ocupam um lugar subalterno na tríade da miscigenação capixaba, em evidente desequilíbrio diante da exaltação da trajetória histórica do colonizador e dos imigrantes europeus vindos na política do embranquecimento.
Mesmo construindo braçalmente as riquezas criadas. Mesmo tendo forte presença na criação dos principais elementos culturais como o congo, o jongo e o ticumbi. Mesmo sendo, atualmente, 60% da população. Mesmo diante da presença de 56 comunidades quilombolas, comunidades essas responsáveis por agricultura, tradições, arte e culturas próprias, mas que ainda necessitam travar conflitos para resguardar o básico: sua própria existência!
Dona Domingas, em vida e em silêncio, marchou em luta diária, exibindo, em movimento, a sua dor.
Hoje, em forma estática e exprimindo o mesmo silêncio, simboliza a dor de um povo que precisa lutar diariamente para sobreviver.
Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.
