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Iphan faz confusão com obra criada por capixaba para Museu do Falso

Iphan faz confusão com obra criada por capixaba para Museu do Falso

Instituto recebeu uma denúncia e enviou ofício ao artista Aparecido José Cirillo na última sexta-feira (10); obra fictícia foi feita para o espaço, que fica em Portugal

Publicado em 15 de junho de 2022 às 19:31

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Proto-Thesaurus Anchieta está exposta no Museu do Falso, em Portugal
Proto-Thesaurus Anchieta está exposta no Museu do Falso, em Portugal. (Acervo pessoal)

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) acreditou que uma obra de arte que imita um manuscrito do século XVI se tratava, verdadeiramente, de anotações do Padre José de Anchieta — e ainda notificou o artista Aparecido José Cirillo, na última sexta-feira (10), requerendo o objeto como sendo do próprio acervo, vislumbrando até a possibilidade de "tráfico ilícito de bens culturais".

Denominada Proto-Thesaurus Anchieta, a peça faz parte do acervo do Museu do Falso — que, como o próprio nome sugere, não trabalha com itens realmente históricos. Como consta no site oficial, o objetivo do espaço sediado em Lisboa, Portugal, é trabalhar com "realidades alternativas" e sempre com criações feitas especificamente para este fim.

No caso do pequeno caderno, foram necessários cinco meses para a elaboração. De novembro do ano passado até fevereiro deste ano, Cirillo construiu a história fictícia. "Trabalhei a partir da criação da língua tupi-guarani pelos Jesuítas e criei um objeto com supostas anotações do Padre José de Anchieta da época do desbravamento do Brasil", explicou.

Aspas de citação

Entre as anotações, Anchieta descreveria um jogo realizado com até 12 pessoas para poder discutir que o futebol seria uma invenção do brasileiro e não dos ingleses. Tem uma página inteira com uma gravura da partida. Isso é impossível de ter acontecido

Aparecido José Cirillo
Artista plástico e professor da Ufes
Aspas de citação

Após a imaginação dar conta do que seria o conteúdo, o professor da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) foi atrás das técnicas para conferir a aparência envelhecida à caderneta. "Aprendi como envelhecer o couro e as folhas e fiz um processo de sublimação para dar aspecto de tinta oxidada e desgastada aos escritos", revelou.

Imagem mostra processo de produção do caderno fictício atribuído ao Padre Anchieta, criado por Aparecido José Cirillo (Aparecido José Cirillo)

Para deixar a peça ainda mais realista, Cirillo explicou que todo o processo foi artesanal e conversou com uma encadernadora. "Ela explicou que no século XVI não havia guilhotina. Então, não poderia cortar os papéis com estilete, retinho. Por isso, cortei com régua e eles são meio serrilhados, esfarelados na borda", disse.

Todo o processo, que também incluiu a inserção do brasão Jesuíta nas páginas, terminou no final de março deste ano. No dia 4 de abril, a obra embarcou para Portugal e, no início de maio, passou a fazer parte do Museu do Falso, ainda no âmbito das comemorações aos 500 anos da conversão de Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus.

TÃO REALISTA QUE...

Ainda a caminho da terrinha e muito antes de qualquer confusão com o Iphan, a obra chegou a ficar cerca de 30 dias parada na alfândega portuguesa — o que, segundo o artista, nunca havia acontecido com as demais peças do acervo do museu que precisaram ser exportadas para Lisboa.

"Aquela vez foi a única que me passou pela cabeça que poderia haver uma confusão, achando que seria um bem arqueológico real. Porém, era só cheirarem as folhas que iam sentir o aroma do café que usei para fazer o envelhecimento. No final, eles liberaram sem qualquer problema", lembrou Cirillo.

Imagem mostra processo de produção do caderno fictício atribuído ao Padre Anchieta, criado por Aparecido José Cirillo
Imagem mostra processo de produção do caderno fictício atribuído ao Padre Anchieta. (Aparecido José Cirillo)

Entretanto, na última sexta-feira (10), ele foi surpreendido com um ofício da Superintendência do Iphan no Espírito Santo. "Recebi o e-mail e, em um primeiro momento, achei engraçado; mas depois fui olhar o anexo e já falava de Polícia Federal e possível tráfico internacional de bens", comentou.

De acordo com o professor, o acionamento partiu de uma denúncia feita ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. "Alguém achou que eu estava em posse de um bem, e o Iphan me mandou um documento pedindo para que eu o devolvesse. De repente, me vi arrolado em um processo de desvio de patrimônio arqueológico."

Aspas de citação

Eu entenderia uma pessoa comum fazer essa confusão, mas o que achei estranho foi o Iphan embarcar, sem fazer a devida investigação e já exigir a devolução, citando um bando de lei

Aparecido José Cirillo
Artista plástico e professor da Ufes
Aspas de citação

Com prazo de dez dias para responder oficialmente, José Cirillo por enquanto disse ter tido apenas uma conversa informal com o órgão federal. "Pelo que eu entendi, teve algum sumiço no Santuário Nacional de São José de Anchieta e acredito que esse problema pode ter cegado a leitura do Iphan", analisou.

"Na própria ficha de inventário fictícia da peça, eles verificaram inconsistências. Disseram, por exemplo, que uma pessoa que eu inventei não teve autorização para realizar pesquisa arqueológica no Santuário de Anchieta. Faltou sensibilidade do Iphan para perceber que é uma brincadeira", disse.

Apesar da confusão para a qual tem juntado documentações para provar a inocência, o artista viu a atrapalhada como uma espécie de selo de qualidade do trabalho. "De um certo modo, é excepcional, porque criou uma situação real a partir de uma ficcional. Fui vítima do próprio enredo que criei", avaliou.

SURPRESA PARA MUSEU DO FALSO

Coordenador-geral do Museu do Falso, Rui Macário Ribeiro revelou que nunca passou por uma situação semelhante, de impacto internacional, desde a criação do espaço, há dez anos. "O nosso propósito é muito claro e nosso próprio nome sugere isso. No fundo, foi uma surpresa", admitiu.

Fotos do interior do Museu do Falso, em Lisboa; visitantes recebem informações sobre a não veracidade histórica das obras do local
Fotos do interior do Museu do Falso, em Lisboa; visitantes recebem informações sobre a não veracidade histórica das obras do local. (Museu do Falso | Montagem A Gazeta)

Por telefone, ele esclareceu que todas as criações do acervo são contemporâneas e feitas para o local. "Não temos relíquias verdadeiras. São peças originais criadas para nós. O Cirillo se inspirou nos achados reais para inventar um documento que nunca existiu", disse.

Ribeiro também explicou a missão do Museu do Falso. "Queríamos tratar da leitura crítica das narrativas conduzidas pelos museus, que têm grande autoridade. Nossa ideia é fazer uma análise crítica da história e do contexto, por meio de uma obra de ficção e uma página de contextualização verdadeira."

O QUE DIZ O IPHAN

Procurado por A Gazeta, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Espírito Santo (Iphan-ES) ressaltou que não há processo aberto contra o artista plástico Aparecido José Cirillo e que não houve intimação. "O ofício enviado a alguns atores trata-se de 'solicitação de informações'", afirmou.

O órgão também informou que recebeu a denúncia sobre a obra em exposição no Museu do Falso no final de maio e que a solicitação feita faz parte do respectivo trabalho de fiscalizar antiguidades, obras de arte, manuscritos e livros antigos ou raros que forem objetos de comercialização.

Obra denominada
Obra denominada "Proto-Thesaurus Anchieta" está exposta no Museu do Falso, em Lisboa, Portugal. (Acervo pessoal)

Em nota, o Iphan-ES ainda afirmou que verificou a página que divulga a peça na referida exposição, "que apresenta várias informações reais em relação à restauração do Santuário". No entanto, voltou a alegar que a página "não informa que se trata de uma obra fictícia".

"Após receber a solicitação, o artista plástico entrou em contato, fez os devidos esclarecimentos e se comprometeu a enviar as informações necessárias. O Iphan destaca que a divulgação de informações falsas são práticas não recomendadas e que podem acarretar inúmeros prejuízos", concluiu.

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