O novo modelo de crédito imobiliário anunciado pelo governo federal tem alcance muito maior do que uma simples mudança nas regras da poupança. Trata-se de uma tentativa de usar a regulação financeira como instrumento de política econômica, capaz de reativar um setor intensivo em emprego e de alto poder de encadeamento produtivo: a construção civil. A medida parte de uma lógica simples, mas poderosa. Em vez de injetar recursos públicos, o governo busca liberar dinheiro que já está no sistema, mas que permanecia represado por regras antigas.
Ao permitir que até 100% dos depósitos da poupança sejam direcionados ao crédito imobiliário, o governo mexe na principal fonte de financiamento habitacional do país. Até agora, grande parte desse dinheiro não chegava às famílias porque os bancos eram obrigados a reter parcelas significativas no Banco Central, em forma de compulsório, ou aplicar parte em outras operações financeiras. A nova regra muda os incentivos: quanto mais o banco emprestar para habitação, menos recursos precisará deixar parados. É uma espécie de alavanca regulatória que transforma liquidez imobilizada em crédito produtivo.
As implicações econômicas são relevantes. O primeiro impacto deve aparecer na expansão do crédito imobiliário e na reativação da cadeia da construção civil. Esse é um setor de efeito multiplicador elevado: para cada real investido, há impactos diretos sobre o emprego formal, sobre a renda e sobre o consumo de insumos como aço, cimento, cerâmica e móveis. Um aumento expressivo no crédito habitacional tende, portanto, a estimular a atividade econômica de forma ampla e descentralizada. Em um momento em que a economia cresce de forma desigual entre setores, o impulso sobre a construção pode ajudar a sustentar o nível de emprego e compensar a desaceleração do comércio e da indústria leve.
Outro efeito esperado está no custo do financiamento. A poupança é uma fonte de captação barata para os bancos, e sua utilização integral reduz a necessidade de recorrer a funding mais caro do mercado de capitais. Além disso, o desconto de até 5% no compulsório, concedido pelo Banco Central, reduz o custo de oportunidade e amplia a liquidez. A combinação desses fatores tende a reduzir o custo efetivo total dos financiamentos ou, no mínimo, a impedir que os juros subam mesmo em um cenário de incerteza macroeconômica. Essa estabilidade no crédito imobiliário é relevante não apenas para o comprador individual, mas também para a previsibilidade das incorporadoras e construtoras, que dependem de ciclos longos de investimento.
O novo modelo também pode ter efeito redistributivo. Ao exigir que 80% dos financiamentos sejam enquadrados no Sistema Financeiro da Habitação e ao criar incentivos para imóveis de até um milhão de reais, o governo busca deslocar o crédito do alto padrão para a classe média e média-baixa, faixa onde a demanda por moradia é mais sensível à renda e ao emprego. Esse redirecionamento tem potencial de reduzir desigualdades no acesso ao crédito, mas também de estimular o consumo em regiões intermediárias do país, onde o setor imobiliário tem papel relevante no dinamismo local.
Do ponto de vista macroeconômico, há um segundo conjunto de efeitos a considerar. A liberação de liquidez estimada em mais de 100 bilhões de reais deve aumentar a oferta de crédito e, consequentemente, o volume de investimentos privados em construção. Esse movimento tende a elevar o PIB no curto prazo e a arrecadação tributária, sem pressionar o gasto público. O lado positivo é evidente: mais investimento, mais emprego e mais renda. Mas há contrapartidas que exigem atenção. Se a expansão for muito rápida, pode gerar pressão sobre preços de terrenos e materiais, além de aumentar a alavancagem das famílias. Em um cenário de juros altos e renda ainda instável, o risco de inadimplência não é desprezível.
Outro ponto é a dependência da própria poupança. O modelo parte da premissa de que os depósitos continuarão crescendo, mas nos últimos anos essa captação tem sido volátil. Em períodos de juros elevados, investidores tendem a migrar para produtos financeiros mais rentáveis, reduzindo o saldo da poupança e, portanto, a base de financiamento habitacional. Isso pode limitar a eficácia da política, principalmente se o ambiente macroeconômico não oferecer estabilidade e confiança.
A medida, em resumo, é inteligente e necessária para um sistema financeiro que ainda carrega travas herdadas de outra época. Ao trocar subsídios diretos por incentivos regulatórios, o governo reduz custos fiscais e amplia o papel do crédito privado no financiamento do desenvolvimento. O sucesso, porém, dependerá da calibragem entre estímulo e prudência.
O país precisa de mais crédito produtivo, mas não pode repetir ciclos de euforia e correção que já marcaram outros momentos do mercado imobiliário. Se bem executado, o novo modelo pode combinar expansão de crédito, fortalecimento da classe média e dinamismo econômico sem desequilibrar as contas públicas. É uma política que age pelo lado certo da economia: libera o que já existe, reorganiza incentivos e transforma liquidez parada em crescimento real.
No caso do Espírito Santo, os efeitos podem ser expressivos. O estado tem uma das cadeias da construção civil mais organizadas do país, com forte presença de pequenas e médias construtoras, alto nível de formalização e uma demanda habitacional reprimida nas regiões metropolitanas e turísticas. A ampliação do crédito tende a impulsionar o mercado imobiliário capixaba, aumentar a arrecadação de ISS e ITBI nos municípios e gerar empregos diretos na construção e indiretos em serviços e comércio.
A interiorização do crédito habitacional pode também favorecer cidades médias, como Linhares, Aracruz e Cachoeiro, que vivem ciclos de expansão industrial e precisam de novas moradias. Para o Espírito Santo, portanto, o novo modelo de crédito imobiliário não é apenas uma mudança regulatória nacional: é uma oportunidade concreta de crescimento regional sustentado.
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