
Após ser hackeada, a prova de uma disciplina do curso de Medicina da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) foi vendida a R$ 12. Dezessete estudantes pagaram o valor, que foi transferido via Pix. A comercialização resultou na expulsão (desligamento) de dois alunos — um deles recebeu o total pago pelos colegas —, e na suspensão de todas as atividades acadêmicas por 90 dias para outros 16.
As punições foram aplicadas pela Universidade no dia 22 do mês passado, após realização de processo disciplinar constatar os fatos envolvendo uma prova do primeiro semestre de 2023, da disciplina de Anatomia e Fisiopatologia. Ao todo 19 alunos foram investigados, sendo que o processo foi arquivado para um deles.
As informações sobre o pagamento pela prova estão em decisão da Justiça Federal, acionada por parte dos alunos. Eles solicitaram uma liminar para evitar a aplicação das penalidades, o que foi negado.
O texto judicial diz que, ao contrário do argumentado pelos estudantes, não foi demonstrada a ilegalidade para que fosse considerada a nulidade do processo administrativo que os investigou. E a liminar foi indeferida "por ausência de probabilidade do direito”.
Foi dito ainda sobre a decisão da Ufes: “A proporcionalidade das penas foi respeitada, não devendo o Poder Judiciário intervir no mérito administrativo, a menos que haja uma flagrante subversão da ordem jurídica, o que não foi o caso. A substituição da pena aplicada e fundamentada no processo administrativo por outra ao sabor do Poder Judiciário não é permitida, sob pena de violação da independência dos poderes, princípio básico constitucional”.
A venda
A comercialização da prova ocorreu via grupo de WhatsApp e foram as capturas de tela das mensagens que ajudaram nas investigações. No espaço foi divulgado: “A gnt conseguiu a prova de amanhã”. O pagamento do preço foi fixado pelo aluno que tinha o exame.
O valor de R$ 12 foi confirmado pela maioria dos alunos investigados no processo disciplinar e corroborado ainda pelo extrato bancário do estudante que fez a cobrança e recebeu via Pix as transferências realizadas por 17 alunos, e que totalizou um valor de R$ 204, pago no dia 24 de julho de 2023.
O texto judicial destaca que a clareza da mensagem enviada derruba um dos argumentos apresentados pela defesa dos alunos punidos, de que a prova oferecida era antiga. “Sendo impossível a tese defensiva de que o material ofertado se referia a provas antigas que costumam circular entre alunos. Ficou claro que a avaliação comercializada era a que ainda seria aplicada e, obviamente, obtida por meio ilegal”.
É informado ainda que o estudante que não foi penalizado por não ter participado da compra da avaliação, relatou que os materiais (como resumos ou provas antigas) não costumam ser objeto de venda, mas sim compartilhados entre alunos. “O que mostra o caráter ilícito da operação entre os alunos naquele grupo de WhatsApp”, foi dito na decisão.
A prova hackeada não chegou a ser aplicada. Ao ser informada sobre a suspeita de vazamento, a professora da disciplina de Anatomia e Fisiopatologia alterou o exame. O que não muda, aponta a Justiça, a responsabilidade dos alunos.
“Há comprovação nos autos (e até confissões) acerca da efetiva compra do material ofertado, de modo que a substituição da avaliação pela docente antes da efetiva aplicação do exame decorreu de motivos alheios à vontade dos estudantes, não se prestando à finalidade de afastar a tipicidade ou a ilicitude do comportamento em questão”, informa o texto.
A coluna teve acesso a parte dos documentos, que são públicos, mas os nomes dos alunos não estão sendo divulgados porque, segundo informações da própria Universidade, “o processo ainda está em curso” e pode haver recursos contra a decisão em relação aos estudantes.
O que aconteceu
A investigação teve início em 18 de setembro de 2023, após denúncia de que houve vazamento de uma prova final da disciplina de Anatomia e Fisiopatologia, referente ao primeiro semestre de 2023.
Uma comissão foi nomeada pela direção do Centro de Ciências da Saúde (CCS) — a qual o curso de Medicina está vinculado, no campus de Maruípe —, para apurar o caso. A conclusão foi de que houve um esquema de invasão do drive da disciplina, sem autorização dos professores por ela responsáveis.
Após ser hackeada, a prova final que seria aplicada naquele semestre foi vendida a outros 17 estudantes do curso. Com base na conclusão da investigação, foram desligados dois estudantes e suspensos outros 16. Um último aluno teve o processo arquivado.
No dia 26 de maio, por nota, a Ufes informou que o Inquérito Administrativo Disciplinar (IAD) para apuração dos fatos foi aberto logo após o recebimento da denúncia. E que os trabalhos foram coordenados por uma comissão disciplinar formada por cinco pessoas, sendo quatro docentes e um estudante, segundo o previsto no Regimento Geral da Ufes.
“Durante todo o andamento do processo foi garantido amplo direito de defesa aos 19 estudantes denunciados”, assinala. A administração central da Ufes informou que “preza pela probidade no âmbito da Universidade”.
“Nessa perspectiva, atuamos continuamente para que as relações entre docentes, técnicos-administrativos e estudantes sejam construídas com base neste princípio. Qualquer denúncia de violação a essa norma será devidamente apurada na forma da lei”, assinala, em nota, a administração da Ufes.
O advogado que representa os estudantes não foi localizado, mas o espaço segue aberto a sua manifestação.
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