Tive o privilégio de estar, nos últimos quatro anos, à frente da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), entidade nacional que congrega bioeticistas e pessoas interessadas nas inúmeras temáticas que se interconectam com a ética da vida.
Juristas de todas as carreiras jurídicas, filósofos, médicos, enfermeiros, odontólogos, teólogos, farmacêuticos, cientistas sociais, jornalistas e tantas outras profissões compõem o quadro de sócios da entidade, deixando evidente sua condição de área do conhecimento inter, multi e transdisciplinar, responsável por promover o diálogo e a aproximação entre os diferentes saberes necessários para a construção de um futuro que nos seja possível de forma a vivermos a vida com dignidade, respeito e paz.
Diferentemente de todos os outros artigos que escrevi ao longo de tantos anos nesta coluna semanal, nos quais trouxe ao debate temas tratados em uma perspectiva da Bioética e dos Direitos Humanos, neste decidi trazer para conhecimento público a fonte de onde emergem muitos dos temas sobre os quais me debrucei semanalmente e que compartilhei com vocês neste espaço.
Como bioeticista, doutora em Bioética pela UnB, e mestre em Direito pela FDV, professora de Direitos e Garantias Fundamentais, procurei centrar minhas reflexões em uma perspectiva sempre sustentada nos princípios basilares da Bioética, da Justiça, dos Direitos Humanos, mais especificamente, e da democracia.
Nesses quatro anos travamos muitas lutas em defesa da vida digna, boa e justa, para todos os brasileiros e brasileiras. Fundamentamos nossas reflexões e intervenções nos princípios da Bioética, tais quais se encontram expressos na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco que completa, agora em outubro, 20 anos.
No período da pandemia, nos manifestamos de forma contundente em defesa da vida, da ciência e da justiça, enfrentando os descalabros do governo negacionista do presidente de então que, contra todas as evidências científicas, submeteu a população brasileira a experimentos incompatíveis com a ciência e a dignidade.
Denunciamos, por todos os meios lícitos existentes, inclusive no Judiciário, as violações de Direitos Fundamentais e as políticas de desprezo à vida e à saúde da população brasileira. Nos posicionamos em audiências públicas no Senado, na Câmara dos Deputados, na TV e em jornais de grande circulação.
Rompemos parcerias antigas, consolidadas, com importante entidade profissional da saúde no Brasil, que se vendeu ao sistema opressor, imiscuindo-se na política de tal modo a comprometer seus valores mais caros, a dignidade institucional e a credibilidade no conhecimento científico como elemento central a sustentar as políticas públicas de saúde e as condutas profissionais.
Combatemos as fake news, especialmente aquelas referentes à utilização de medicamentos como cloroquina, azitromicina e Ivermectina, bem como o negacionismo da vacina, que tanto mal e mortes nos causou, permitindo que ultrapassássemos 700 mil mortos.
Denunciamos as fake news referentes às urnas eletrônicas e nos posicionamos de forma contundente e decisiva em defesa da democracia.
Acompanhamos as principais entidades democráticas de nosso país nas lutas pelo respeito à institucionalidade, à verdade e à manutenção de critérios justos na distribuição dos bens da vida, rechaçando as violências e as desigualdades sociais.
Participamos da luta em defesa de uma ética em pesquisa coerente com os princípios de autonomia, da equidade, do consentimento e do controle social. No confronto com a poderosa indústria de medicamentos, saímos perdedores, na medida em que tivemos de suportar a promulgação de uma lei com todos os elementos constitutivos de violação da constitucionalidade e de retrocessos nos direitos dos participantes de pesquisa no Brasil.
Inconformados, depois de longas tratativas infrutíferas no executivo e no legislativo, entramos no STF com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade mostrando que não aceitaremos retrocessos quando o que está em discussão é a defesa da ética em pesquisa e dos participantes dela. Não queremos ser cobaias de experimentos que irão enriquecer nações no norte global enquanto nossos cidadãos sofrem as consequências das desigualdades em saúde.
As diversas ações judiciais que protocolizamos (ADPFs, ADIs, atuações como Amicus Curiae entre outras) em defesa dos direitos e garantias fundamentais, inclusive de meninas e mulheres, mostram o espírito combativo da entidade na luta por direitos e por justiça e são reveladoras de nossas lutas por dignidade, paz, igualdade para todos e para todas, em todas as áreas da vida humana.
Foram inúmeras as lutas relacionadas às questões do direito à saúde, à vida, à educação, a um meio ambiente que possa nos levar a construção de um futuro minimamente adequado ao alcance de uma vida boa e digna.
Criamos o videocast “Questão de Vida”, disponível no Youtube e Spotify, para termos um espaço privilegiado para promover o debate sobre os grandes dilemas com os quais nos deparamos todos os dias.
Encerramos nosso mandato no ano em que a SBB completa seus 30 anos de existência e no qual comemoramos os 20 anos da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da Unesco.
Enfim, termino essa breve exposição acerca da Sociedade Brasileira de Bioética, para dizer que continuamos fiéis à proposta de Van Rensselaer Potter, que afirmava ser a Bioética “uma ponte para o futuro”, nos alertando da necessidade de conectarmos o Bios (vida) com o Ethos (ética).
Ao encerrar este ciclo à frente da Sociedade Brasileira de Bioética, reafirmo minha convicção de que a SBB permanecerá como referência ética e científica na defesa da vida e da dignidade, fortalecendo o diálogo entre saberes e inspirando políticas públicas responsáveis.
A bioética, essa “ponte para o futuro” de que falava Van Rensselaer Potter, continuará a nos convocar a escolhas baseadas na justiça, na solidariedade e no respeito às diferenças, garantindo que o compromisso coletivo com a vida em sua diversidade siga iluminando o caminho de um mundo mais justo, plural e verdadeiramente humano.
A Bioética é, certamente, o caminho a ser trilhado para a construção desse mundo mais tolerante, mais respeitoso das diferenças, mais compreensivo das diversas formas como a vida se manifesta no planeta Terra.
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