Há momentos em que uma pergunta vale mais do que qualquer resposta. No púlpito da ONU, Lula não lançou apenas uma provocação, mas também uma chave de instrospecção que aponta para um mergulho interno: “É virtude deles ou incompetência nossa?”.
Ao falar sobre ascensão da extrema-direita, ele parecia, antes de tudo, falar à própria esquerda, convocando-a a revisitar a própria história e a admitir que algo se perdeu pelo caminho. Em vez de um ataque, a frase soou como um convite à reflexão — desses que exigem mais silêncio do que aplauso.
O Partido dos Trabalhadores nasceu em um tempo de fervor. Era início dos anos 1980, a ditadura militar dava sinais de cansaço e o Brasil experimentava o rumor de uma democracia que se anunciava. Nas fábricas, nos bairros, nas paróquias, nas salas de aula, o PT florescia como novidade política: núcleos por vila, por trabalho, por estudo.
Era o encontro de operários, intelectuais e sonhadores que acreditavam que a política podia ser feita de baixo para cima, com a força da sociedade civil. Havia uma mística de participação, uma crença de que a História podia ser virada com assembleias, panfletos e noites insones.
Quarenta anos depois, esse cenário parece quase um mito fundador. O partido que um dia simbolizou a insurgência tornou-se parte do sistema que prometia renovar. Para governar, cedeu ao pragmatismo, firmou alianças, adotou métodos que antes combatia. Não se trata de trair a própria história, mas de um processo natural de institucionalização.
Max Weber chamaria de “ética da responsabilidade”: a necessidade de fazer escolhas para permanecer no jogo. Enquanto a esquerda se adaptava, as bases que lhe davam fôlego se enfraqueceram. Sindicatos perderam densidade, movimentos se fragmentaram, a política de rua cedeu espaço ao ritmo frenético das redes.
Nesse novo terreno, a extrema-direita aprendeu a jogar melhor. Com linguagem direta, memes ácidos e a exploração do medo, soube transformar ressentimento em mobilização. As plataformas digitais, que poderiam ser arenas de debate, tornaram-se corredores de indignação. E a esquerda, muitas vezes, respondeu com marketing, não com organização. A pergunta de Lula ressoa, então, como confissão: onde deixamos de semear para que outros colhessem?
A História ensina que democracias não se sustentam apenas por instituições, mas por laços vivos. Quando esses laços se afrouxam, abre-se espaço para quem promete ordem ou revanche. A extrema-direita não cresceu só por seus méritos — embora tenha mostrado astúcia em ocupar o vazio —, mas porque a esquerda, ao se acomodar, esqueceu de falar ao coração das pessoas, de criar novas utopias, de formar consciência política para um tempo em que a precariedade e a desinformação corroem certezas.
Responder ao espelho de Lula é reconhecer que virtude e incompetência caminham juntas. Há mérito no adversário, sim, mas há também descuido de quem um dia foi sinônimo de mobilização. Se a democracia, como já disse John Dewey, é “uma forma de vida associativa”, cabe à esquerda reaprender a se associar, a reaparecer nas praças, nas escolas, nos locais de trabalho. Mais que derrotar a extrema-direita nas urnas, é preciso devolver encanto à própria ideia de democracia.
A pergunta de Lula não pede aplauso. Pede coragem. Coragem para admitir que o Brasil mudou, que a esquerda mudou e que o povo, quando não é ouvido, encontra quem lhe fale — mesmo que em tom de ameaça. Talvez seja esse o começo de uma nova história: reconhecer que o espelho não mente e que a resposta, por mais incômoda, precisa ser construída em cada esquina onde a política ainda respira.
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