Professora da Ufes, coordenadora da Cátedra Sérgio Vieira de Mello ACNUR/ONU para refugiados e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ufes

Luta contra desigualdades: não podemos aceitar que não há nada a ser feito

Sabe-se que a desigualdade é causada muitas vezes por motivos incontroláveis, seja porque são de ordem natural, seja porque são de ordem histórica, mas isso não quer dizer que essa realidade não pode ser mudada

Publicado em 16/02/2022 às 02h00
Desigualdade salarial e discriminação podem aumentar no mercado de trabalho
Há muitos momentos na história em que fica claro que situações de injustiça são fruto da ganância . Crédito: Freepik

A defesa de direitos humanos desde sempre tem sido uma luta inglória, por mais que a humanidade perceba a sua necessidade, ainda hoje existem grupos que questionam a sua efetividade na prática. A esse ceticismo, que existe também dentro da academia, o filósofo norte-americano John Rawls (1921-2002) respondia explicando que a maneira como as coisas são não determina a maneira como elas deveriam ser.

Isso é o que nos relembra outro filósofo norte-americano, Michel J. Sandel, em seu livro Justiça: o que é fazer a coisa certa. Sandel escreve que a teoria da justiça de Rawls vem sendo muito criticada, em especial, por teóricos libertários e neo-liberais. Dentre esses últimos, destaca-se o posicionamento do economista Milton Friedman em seu livro "Free to Choose", quando diz que “a vida não é justa. É tentador acreditar que o governo pode consertar aquilo que a natureza criou. Mas também é importante reconhecer que nos beneficiamos muito da injustiça que deploramos".

Mais do que a reflexão de Rawls, é a última frase de Friedman, acima, que explica melhor o mundo que vivemos. Porém, que o mundo seja assim, injusto, não quer dizer que ele deveria ser assim. Ainda há muito a fazer, e é justamente a luta por direitos humanos que tem pavimentado o caminho para a justiça na melhor distribuição de riquezas e bens sociais.

A mão invisível do mercado, por si só, não dá conta de realizar justiça. Há muitos casos em que fica evidente a necessidade de o Estado atuar a fim de fazer cumprir as normas que no Brasil definem os direitos humanos de seus cidadãos e estrangeiros que estejam em nosso território. Há também muitos momentos na história em que fica claro que situações de injustiça são fruto da ganância de uma ou mais pessoas que se beneficiam do sofrimento de outros. Mas não devemos nem podemos aceitar simplesmente que as instituições são sempre falhas e que não há nada a ser feito.

A distribuição natural de riquezas, bens e talentos no mundo não é sempre equânime, há, como todos sabem, pessoas ou grupos dotados de mais riquezas, outros de mais talentos, e, ainda, aqueles que simplesmente herdaram muitos bens sem que fizessem nada para isso. Essas condições incontroláveis, de ordem natural, não podem ser desfeitas como num retroagir da roda do tempo, mas, sim, podem ser alvo de políticas públicas que visem lidar com as diferenças e injustiças sociais.

Em outras palavras, sabe-se que a realidade é de desigualdade causada muitas vezes por motivos incontroláveis, seja porque são de ordem natural, seja porque são de ordem histórica, porém, isso não quer dizer que essa realidade não pode ser mudada. Mais ainda, o papel de liderança dessa mudança está na esfera estatal com amparo em demandas de diversos grupos que fazem parte da sociedade civil.

Não é de causar espanto, portanto, o discurso atual de parte considerável da população brasileira defendendo coisas como “racismo reverso”, “nazismo” e medidas discriminatórias contra estrangeiros, etnias indígenas, mulheres negras, homofobia, entre tantas outras mazelas que têm vindo à tona nesses últimos anos no país. A fala discriminatória e opressora tem por trás o medo de perder os benefícios que determinados grupos sempre tiveram a partir da opressão das minorias no Brasil.

Tenho dúvida se as pessoas que agora defendem o nazismo, realmente, nunca leram um livro de história ou não frequentaram a escola para se informar sobre a barbaridade que foi o regime de Hitler. Acredito que seja simplesmente uma decisão calculada com o uso da razão estratégica: como devo agir para continuar me beneficiando economicamente desse caos social que é o país?

Disseminar a (ou fingir a própria) ignorância beneficia, sim, um grupo importante da sociedade brasileira que há tempos vem se dando bem a custa de muita opressão e discriminação.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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