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Um quarto dos brasileiros não vai ao oftalmologista, indica pesquisa

Um quarto dos brasileiros não vai ao oftalmologista, indica pesquisa

Medicina recomenda ida ao especialista ao menos uma vez por ano, ainda que enxergue bem

Publicado em 27 de junho de 2022 às 07:43

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Karina Pastore, Pedro Lovisi e Catarina Ferreira

Aconteceu no último Carnaval. O primeiro sinal veio sob a forma de pequenos pontos pretos, flutuando diante do olho direito. Mas, Alexandre Cavalcanti, 49, não deu importância. Na manhã seguinte, quando acordou, o consultor de sistemas já não enxergava praticamente nada. Bateu o pânico.

No Brasil, segundo o IBGE, 35 milhões de pessoas têm algum problema ocular.
No Brasil, segundo o IBGE, 35 milhões de pessoas têm algum problema ocular. . (José Nazal/Folhapress)

Era feriado. Do médico encontrado às pressas veio o diagnóstico: descolamento de retina. "Você pode ficar cego", afirmava o especialista, insistindo na urgência da cirurgia. Cavalcanti decidiu arriscar e esperar pela volta de seu oftalmologista. Em 48 horas, foi operado. Hoje, completamente recuperado, se emociona ao lembrar o episódio. A angústia daqueles dias, ele sabe, poderia ter sido, se não evitada, amenizada.

Portador de alta miopia havia seis anos, Cavalcanti não fazia check-ups. "Um monte de coisa para fazer e a gente vai levando", justifica ele. "E o que está bom, você acha que não tem problema."

Se fosse ao oftalmologista ao menos uma vez por ano, como preconiza a medicina, Cavalcanti saberia que miopia grave é fator de risco para descolamento de retina. O caso ilustra o comportamento de muitos brasileiros em relação à saúde ocular, como mostra pesquisa Datafolha, com 2.088 pessoas, em 130 municípios. Delas, 24% não vão ao oftalmologista.

É a minoria, sim, mas um contingente grande o bastante para despertar a preocupação de especialistas, sobretudo porque metade do total de entrevistados relata alguma dificuldade para enxergar. Por outro lado, 42% dos ouvidos disseram ter ido ao oftalmologista ao menos uma vez nos últimos 12 meses.

Dos que dispensam o acompanhamento, 60% o fazem porque alegam "enxergar bem", como Cavalcanti. Uma premissa tão equivocada quanto arriscada. "O sistema óptico funciona por compensação", diz o oftalmologista Rodrigo Pegado, da SBO (Sociedade Brasileira de Oftalmologia). "Como temos dois olhos, muitas vezes um olho acaba compensando o que está ruim e a pessoa tem a falsa sensação de que está tudo normal."

Além disso, condições graves, como catarata e glaucoma, são lentas e silenciosas. Quando surgem os primeiros sintomas, pode ser tarde.

Caracterizado por danos progressivos no nervo óptico, o glaucoma, por exemplo, pode avançar ao longo de 10, 20 anos, sem dar nenhum sinal. E fibra óptica lesionada não se regenera, alerta Pegado. Segunda causa de cegueira no Brasil, o distúrbio afeta 900 mil pessoas no país, de acordo com a OMS (Organização Mundial de Saúde).

No Brasil, segundo o IBGE, 35 milhões de pessoas têm algum problema ocular. Deles, quase 600 mil são cegos. Em 80% dos casos, a visão poderia ter sido preservada com medidas preventivas e/ou tratamentos adequados, diz a OMS. Não é por falta de informação. Conforme o Datafolha, 95% dos entrevistados conhecem as principais doenças oculares. Entre as mais citadas estão catarata (95% das menções) e glaucoma (74%).

Outro dado da pesquisa que chama a atenção dos especialistas é a qualidade das consultas preventivas. Dos que vão ao médico regularmente, menos da metade é submetida a outros exames além do teste de acuidade visual. Muitas vezes, o paciente lê facilmente as letrinhas da tabela de Snellen e, ainda assim, tem doença grave. O rastreamento básico, diz o oftalmologista Pegado, prevê também medição da pressão intraocular e análise do fundo de olho.

Bons hábitos, como não fumar e ter dieta equilibrada, são igualmente fundamentais para a saúde dos olhos.

Com o aumento da expectativa de vida, a incidência das doenças oculares também cresce. Muitas estão associadas à falta de controle de outras condições crônicas, típicas do envelhecimento. Uma das mais comuns e perigosas, a retinopatia diabética, na imensa maioria dos casos, surge em decorrência do manejo inadequado do diabetes.

Deixada a seu próprio curso, a complicação microvascular da retina, causada pelo excesso de glicose no sangue, pode levar até 50% dos pacientes à cegueira em cinco anos. No Brasil, o Ministério da Saúde estima em 2 milhões o número de doentes. Junto com hipertensão e aterosclerose, o diabetes também é fator de risco para OVR (oclusão venosa da retina), caracterizada pelo enrijecimento das artérias da retina ou por sua obstrução, causada, em geral, por coágulo.

A urgência na promoção da saúde ocular não visa só o bem-estar dos pacientes de hoje, mas também conter a explosão de problemas prevista para os próximos anos. O descuido com a prevenção impacta a qualidade de vida dos doentes e suas famílias, e a precariedade das políticas e programas de detecção precoce afeta cofres públicos.

A lei 14.126, promulgada em 2021, garante a quem enxerga apenas com um olho os mesmos direitos e benefícios dos deficientes. "Há uma importância muito grande da prevenção como estratégia política de redução de custo social", afirma Pegado.

Mulher com a mão sobre o olho
Alguns hábitos no dia a dia podem piorar ainda mais a saúde dos olhos. (Freepik)

Pandemia barra tratamentos e prejudica saúde ocular da população

 A pandemia represou consultas e procedimentos de saúde ocular, prejudicando pacientes que tratam doenças como o glaucoma, que acomete o nervo óptico e causa perda irreversível no campo de visão.

Rapidez no diagnóstico é essencial para que as doenças da visão sejam devidamente tratadas e a qualidade de vida do paciente, a melhor possível. A opinião foi compartilhada por especialistas no seminário Saúde dos Olhos, promovido pelo jornal Folha de S.Paulo no dia 14.

O seminário teve mediação de Cláudia Collucci, repórter especial do jornal. O patrocínio foi da biofarmacêutica Allergan, uma empresa Abbvie.

"Atualmente recebemos pacientes com condições mais críticas por terem tido dificuldade de controle da doença na pandemia", afirma Roberto Vessani, chefe da divisão de glaucoma do Departamento de Oftalmologia da Unifesp.

O período de maiores perdas veio com as medidas mais restritivas de isolamento, em 2020, que "deixaram um grande revés no setor", afirma Sérgio Pimentel, chefe do serviço de retina do Hospital das Clínicas da USP.

"A chave para ter saúde a vida toda é prevenir e não tratar apenas quando a doença for avançada", afirma Pimentel.

Entre as especialidades monitoradas pelo CFM (Conselho Federal de Medicina), a oftalmologia registrou a maior queda de atendimentos entre 2019 e 2020, 34%.

Consultas, exames de mapeamento de retina e aferição da pressão intraocular caíram de 18,5 milhões para 12,2 milhões no período.

Nesse cenário, mais pessoas tiveram casos graves de catarata, por exemplo, que torna a visão opaca ao longo do tempo. A doença é a principal causa de cegueira reversível, segundo a OMS.

A enfermidade é comum em pessoas acima dos 55 anos e, quanto mais cedo for tratada, melhor a recuperação e a qualidade de vida do paciente, explica Bruno Machado Fontes, diretor da Associação Brasileira de Catarata e Cirurgia Refrativa. O médico diz que a tecnologia é um dos principais recursos da oftalmologia, o que aumenta a segurança das cirurgias.

De acordo com dados do Conselho Federal de Oftalmologia, o número de cirurgias de catarata dobrou na última década. Entre 2009 e 2019, o total de procedimentos feitos pelo SUS passou de 302 mil para 601 mil.

Paciente com baixa visão e diretora da Escola Estadual Professor Jacob Casseb, em São Bernardo do Campo (SP), Ellen Pouseiro ressalta a importância de consultas com oftalmologista na infância, desde o primeiro ano de vida. Assim, é possível identificar o desenvolvimento e o crescimento dos olhos da criança.

A gestora escolar conta que nasceu com baixa visão, 5% no olho esquerdo e 10% no olho direito, devido a uma infecção por toxoplasmose congênita, quando a doença é transmitida ainda na gestação.

A enfermidade é causada por um protozoário, que chega ao corpo pela ingestão de alimentos mal lavados ou carne mal cozida.

Pimentel, da USP, diz que a infecção pode afetar diversos sistemas do corpo e a manifestação na visão é uma das mais comuns. "A prevenção é o mais importante, consumindo alimentos sempre bem higienizados e cozidos."

O médico diz também que suplementos vitamínicos para a visão são indicados só em casos específicos, com orientação médica. O melhor para a população em geral é ter alimentação balanceada.

Os debatedores também falaram sobre a associação entre maior tempo de exposição às telas, tônica da pandemia, e prejuízos aos olhos.

"A tecnologia causa muito mais fadiga do que lesão. O cansaço é grande, mas o prejuízo não é permanente", afirma Pimentel.

Fontes, da associação de catarata, completa dizendo que o cansaço ocular pode causar dores de cabeça, secura e ardência. "Pausas, hidratação e eventualmente o uso de colírios ajudam nesses sintomas."

ORGANIZAÇÃO LEVA ATENDIMENTO E ÓCULOS A COMUNIDADE INDÍGENA NO LITORAL DA BA

Mais de 500 pessoas receberam atendimento oftalmológico na comunidade indígena Sapucaieira, em Ilhéus (BA), no início de junho.

O projeto é uma parceria da Renovatio, organização que oferece tratamento oftalmológico a pessoas em situação de vulnerabilidade, com a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) e o Instituto Suel Abujamra, de saúde ocular.

Em Ilhéus (BA), indígenas são atendidos durante ação da Renovatio, organização que promove ações de saúde ocular

Exames, entrega de óculos, atendimento odontológico e atividades educacionais fizeram parte da ação. Além dos moradores da região, a iniciativa atendeu outras 36 comunidades vizinhas.

A comunicação com a comunidade foi feita pelo Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena), unidade da Sesai que leva saúde básica a territórios indígenas. No país, existem 34 distritos, distribuídos de acordo com a localização dos povos originários.

Há sete anos, a Renovatio leva a escolas, centros comunitários, territórios indígenas e ribeirinhos doação de óculos, exames de mapeamento de retina, ultrassons e tratamento para doenças como glaucoma e catarata.

A estrutura médica é levada às localidades por uma unidade móvel equipada com um centro de diagnóstico completo. As ações da instituição são mantidas por parcerias com os setores público e privado, além de doações.

Ações como a de Ilhéus são voluntárias. O trabalho do Dsei é fazer a logística e a instalação da estrutura, além de identificar quais as principais demandas de cada região.

Laurentino Biccas Neto, ofalmologista capixaba foi um dos dois médicos brasileiros escolhidos para utilizar o mais novo lançamento mundial da alemã Zeiss
Oftalmologista é um profissional nem sempre encontrado nas comunidades. (Laurentino/Divulgação)

Oftalmologistas estão mal distribuídos no país, mas telemedicina pode mudar cenário

 Há muitos oftalmologistas no Brasil. Eles, porém, não conseguem chegar de forma suficiente a regiões remotas do país e, com isso, o atendimento básico de saúde ocular do SUS (Sistema Único de Saúde) é insatisfatório. A boa notícia é que avanços tecnológicos vêm mudando o cenário.

O jornal Folha de S.Paulo organizou no dia 14 um seminário sobre saúde nos olhos e discutiu os acessos e desafios do setor no Brasil. O evento foi patrocinado pela biofarmacêutica Allergan, uma empresa AbbVie.

Participaram do debate Jacob Cohen, oftalmologista e professor da Universidade Federal do Amazonas; Ralf Toenjes, fundador da ONG Renovatio, que promove ações de saúde visual e doação de óculos; Mirko Babic, especialista em glaucoma pela USP; e Cristiano Caixeta Umbelino, presidente do Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO).

Umbelino defende a inserção da oftalmologia na atenção básica de saúde para encurtar a fila de atendimento do SUS. "A presença do oftalmologista facilitaria a referência do paciente e a adequada coordenação dentro do sistema de saúde para que a pessoa chegue ao profissional qualificado no tempo certo", afirma.

De acordo com levantamento do Datafolha de outubro de 2021, 42% dos brasileiros têm o hábito de consultar-se com um oftalmologista anualmente. Entre os que não procuram o atendimento anual, 9% alegam problemas financeiros. Além disso, metade dos brasileiros com 16 anos ou mais tem dificuldade para enxergar.

"Os pacientes precisam ter consciência que existem doenças que podem cegar. E promover essa informação é crucial", diz Mirko Babic. "O SUS promove completo tratamento e diagnóstico de várias doenças oculares", acrescenta.

O professor Jacob Cohen destaca a resistência de oftalmologistas para trabalhar no interior do país, em especial cidades mais distantes de grandes centros urbanos. Para os especialistas, é necessário que o governo implemente programas para encurtar essas lacunas.

"No Poder Judiciário existe a política de que o concursado, ao entrar na carreira, deve ir a locais mais distantes e, apenas depois de anos, muda-se para regiões mais próximas das capitais. Isso também poderia ser implementado na área da oftalmologia", defende Cohen.

Ele também reivindica que universidades obriguem os formandos a fazerem residência médica no interior. Segundo censo de 2021 do CBO, o Brasil tem 19,5 mil oftalmologistas.

Na média geral, o país tem um oftalmologista para cerca de 11 mil habitantes. Para países desenvolvidos, a OMS (Organização Mundial da Saúde) preconiza a relação de um médico para 17 mil pessoas. No Norte, porém, a média registrada pelo CBO é de um para 19.512 -única região brasileira com dados inferiores ao recomendado pela OMS. No âmbito estadual, apenas Amapá e Maranhão têm números não condizentes com os estipulados pela organização.

Os dados podem se diferenciar com base na metodologia do cálculo. Nesse caso, por exemplo, o conselho considera que um oftalmologista pode atuar em dois estados do país. Quando a regra é desconsiderada, Acre e Pará também apresentam números inferiores ao sugerido pela OMS.

O censo destaca ainda que a oftalmologia está presente em 30% dos municípios brasileiros -as cidades acolhidas agregam quase 80% da população do país.

Enquanto o mercado nacional não consegue atrair oftalmologistas para áreas mais remotas do país, especialistas defendem a necessidade de ampliar a telemedicina do setor. "Existe um canhão de tecnologia que está chegando para transformar a relação entre doutor e paciente na oftalmologia. Há ainda a inteligência artificial para apoiar na triagem do paciente, que é onde o SUS falha", afirma Ralf Toenjes.

Segundo ele, cerca de 10% das pessoas que estão na fila do SUS para atendimento não precisam estar lá. A razão para isso, aponta, seria a falha no encaminhamento dos pacientes. "Tem vez que alguém com problema urgente na retina está na mesma fila de uma pessoa que precisa de óculos", explica. O fato também foi ressaltado por outros especialistas durante o debate.

Na mesma linha, o CFM regulamentou em abril a telemedicina no Brasil. O texto estabelece as regras para o atendimento a distância, disciplinando as diversas modalidades e definindo que esse tipo de atuação é auxiliar.

Cristiano Caixeta Umbelino defende ainda a necessidade de individualizar o atendimento com base nas características das regiões. "Não é sobre colocar um oftalmologista em cada um dos municípios brasileiros, mas é importante estruturar a condição para que o médico seja acessível".

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