Publicado em 23 de fevereiro de 2021 às 14:32
- Atualizado há 5 anos
A tão esperada imunidade de rebanho, que pode recolocar as atividades sociais próximas ao normal, não deve ser atingida neste ano, mesmo com o avanço da vacinação contra a Covid-19.>
O entendimento vem ganhando força entre pesquisadores nos Estados Unidos, devido especialmente à insuficiente velocidade na vacinação e à possibilidade do surgimento de novas variantes, mais transmissíveis e agressivas. Modelos estatísticos reforçam essa avaliação.>
O panorama pessimista levanta a discussão de como as sociedades deverão agir nos próximos meses, dado que a proteção ideal não deve vir tão cedo. A questão discutida é se será possível retomar atividades sociais a partir do momento que populações vulneráveis já estejam vacinadas, sem esperar que o patamar de imunização geral esteja perto de 80% .>
A situação no Brasil é mais crítica, pois o ritmo de vacinação é menor do que nos EUA, e as vacinas aplicadas têm eficácia mais baixa, o que dificulta a chegada à imunidade de rebanho.>
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Esse termo significa o momento em que uma população está suficientemente protegida, e o vírus não consegue mais se propagar em velocidade.>
Tradicionalmente, essa proteção é alcançada por meio da vacinação.>
Como o novo coronavírus se espalhou rapidamente, parte dos epidemiologistas coloca como hipótese que o grande número de infectados também possa ajudar na chegada à imunidade de rebanho (o que não é consenso, pois a imunidade dos contaminados pode ter duração e proteção menores do que dos vacinados).>
Cientista de dados formado no MIT, Youyang Gu apresentou neste mês modelo estatístico que projeta a população americana protegida nos próximos meses, seja por vacinação, seja por contaminação.>
A projeção mostra que a população protegida por uma das duas formas não chegará a 80% nem em janeiro de 2022 (atualmente está na casa dos 30%).>
Ainda que não haja patamar oficial para se definir o que seja a imunidade de rebanho, estudos utilizam percentuais próximos a 80% como referência.>
Youyang utiliza machine learning (técnica em que o computador "aprende" a encontrar padrões em grandes bases de dados) para estimar com mais precisão a evolução de vacinados e infectados.>
O cientista ficou conhecido por ter desenvolvido ano passado um dos melhores modelos estatísticos para indicar o real impacto da Covid. Os resultados foram usados por veículos de imprensa como o The New York Times, e órgãos oficiais, como o CDC (centro ligado ao governo americano para controle de doenças).>
Em sua projeção, os EUA imunizaram 7% da população até o momento. A estimativa dele considera eficácia de 85% das vacinas (patamar ajustado esperado para as doses da Pfizer e Moderna, que têm sido as distribuídas naquele país).>
O cálculo busca identificar a quantidade de americanos efetivamente imunizados, o que é diferente do número de vacinas distribuídas, que podem não ter sido ainda aplicadas ou podem ter sido perdidas no processo de logística, além de considerar o tempo para que o imunizante comece a fazer efeito (três semanas).>
Os americanos distribuíram cinco vezes mais doses do que os brasileiros, já ponderando pelos tamanhos das populações. E as vacinas distribuídas no Brasil, a Oxford/AstraZeneca e a Coronavac, têm eficácia menor do que as presentes nos EUA.>
Quanto menor a eficiência da vacina, mais gente precisa ser imunizada para se alcançar a imunidade de rebanho.>
Num estudo publicado no sábado (20) pelo New York Times, o grupo americano de pesquisa chamado PHICOR mostrou diferentes projeções para que aquele país chegue à imunidade de rebanho.>
A previsão mais otimista é que seja em julho, mas os próprios pesquisadores veem com ceticismo essa possibilidade. Um dos temores é que as pessoas infectadas percam em pouco tempo a imunidade, o que postergaria a chegada ao patamar ideal.>
Israel tem sido apontado como exemplo de como a vacinação pode ajudar no combate à pandemia. O país já vacinou cerca de 50% da população, e entre os maiores de 60 anos, o índice passou de 80%. Mortes e hospitalizações começaram a cair.>
Mas o ritmo de imunização contra a Covid que os israelenses conseguiram parece improvável de ser replicado no curto prazo (o país foi atrás de diferentes laboratórios, de forma agressiva, antes mesmo de as vacinas estarem disponíveis).>
Diante da dificuldade de se atingir a imunidade de rebanho, o cientista de dados Youyang defende que deve ficar em segundo plano o objetivo de se alcançar grandes proporções de vacinados na população como um todo, e que a meta passe a ser reduzir mortes e hospitalizações.>
A volta ao normal, afirmou o pesquisador à Folha, deve ocorrer assim que sejam vacinados todos os que precisam e que queiram (e não apenas quando ao menos cerca de 80% da população total esteja com alguma proteção).>
A avaliação do cientista de dados é compartilhada pelo epidemiologista Marc Lipsitch, professor da Universidade Harvard.>
Num debate online realizado em dezembro pelo Jama (periódico da Associação Médica Americana), ele defendeu que a vida possa voltar razoavelmente ao normal nos EUA quando estiverem imunizados todos os mais vulneráveis, o que pode representar entre 20% e 40% da população geral, segundo ele.>
"Não precisamos ter transmissão zero para termos uma vida decente. Há doenças sendo transmitidas a todo o momento, matando pessoas, nem por isso fechamos tudo", afirmou.>
Segundo o pesquisador, se a população mais vulnerável estiver vacinada, "com uma vacina realmente efetiva", para as demais pessoas a Covid passará a ser simplesmente uma doença contornável. "É um caminho mais claro para chegarmos perto de algo do normal, em vez de perseguirmos a real imunidade de rebanho.">
O epidemiologista disse explicitamente que a proteção deve ocorrer por meio da vacinação eficaz dos vulneráveis. Ele chamou de loucos os que defendem que o vírus deva circular livremente, para que a proteção chegue via grande número de contaminados.>
Médicos têm defendido que, mesmo quando as atividades sociais começarem a ser retomadas, as pessoas deverão continuar seguindo regras de distanciamento social e uso de máscara, pois a proteção ideal estará longe de ser atingida.>
Ana Luiza Bierrenbach, conselheira técnica sênior da iniciativa Vital Strategies, concorda que a vida social possa começar a ser retomada desde que as populações mais vulneráveis estejam imunizadas --ainda que se deva seguir buscando a vacinação de grandes proporções da população.>
Em geral, são apontados como vulneráveis idosos e pessoas com comorbidades. Bierrenbach afirma que as populações mais pobres devam ser incluídas nessa categoria e, portanto, passem a ser prioritárias para a vacina.>
Essa população sofre mais dificuldade em se manter em isolamento social, pois mora em geral em locais muito densos e está em ocupações em que há poucas possibilidades para home office. "É uma discussão que precisa ser feita. Ao fim desta primeira etapa que prioriza idosos e profissionais de saúde, quem serão os próximos?", questiona.>
A epidemiologista diz ser normal as pessoas pensarem na vacina como uma proteção individual, mas, especialmente neste momento de escassez, a imunização precisa ser pensada de forma coletiva --ou seja, deve-se buscar o maior impacto que cada dose vai ter. "Imunizar os mais vulneráveis é um apoio para toda a sociedade.">
Professor de imunologia da Unicamp, Alessandro de Farias é cético em relação à ideia do retorno às atividades sem que haja grande parcela da população vacinada.>
"Quanto mais gente infectada, maior a chance de termos variantes. Até agora, elas são mais transmissíveis, mas não mais graves. E se começarem a aparecer formas mais graves ou que infectem crianças?", afirmou. "O que está em jogo é o risco que queremos correr.">
Para Leonardo Weissmann, infectologista do Instituto Emilio Ribas, se entre 60% e 80% da população estiver imunizada, o objetivo estará alcançado. "Mas é impossível afirmar com precisão qualquer previsão de data, muito provavelmente será depois de 2021.">
Os especialistas locais ouvidos afirmaram que o Brasil teria condição de estar numa velocidade muito maior de vacinação do que a atual. O país é referência em campanhas nacionais de imunização, chegando a vacinar em média mais de um milhão de pessoas por dia contra a gripe, expertise que os EUA , por exemplo, não têm.>
Atualmente, são cerca de 200 mil vacinados contra a Covid diariamente no Brasil. O problema é que não houve aquisição de vacinas para alimentar o sistema de forma plena.>
"É necessário planejamento e maior quantidade de vacinas, para todos os países. Enquanto isso, as pessoas precisam continuar respeitando as orientações de precaução para a transmissão do vírus, como distanciamento físico, uso de máscaras e higienização frequente das mãos", disse o infectologista Weissmann.>
Existem muitas dúvidas sobre como chegar à imunidade de rebanho. Além de não haver percentual consagrado que indique que a população esteja realmente protegida, também há incerteza sobre os fatores que levariam a essa proteção.>
As vacinas, por exemplo, têm mostrado boa eficácia em evitar que as pessoas adoeçam, especialmente evitando quadros graves. Mas ainda é incerto o quanto elas evitam a transmissão do vírus.>
Num cenário mais pessimista, em que os imunizantes não diminuam consideravelmente a transmissão, a imunidade de rebanho vai demorar mais para ser alcançada, pois mesmo os vacinados seguirão contaminando muitas pessoas.>
Também há dúvidas sobre o período em que as pessoas ficarão protegidas, considerando os vacinados e, especialmente, os infectados.>
Um caso que está sendo estudado mundialmente é o de Manaus. Epicentro da primeira onda de mortes no país, em maio, a cidade chegou a ter 76% da população infectada, segundo estudo publicado na revista Science, com dados até outubro.>
Com esse patamar, a capital amazonense teria provavelmente atingido a imunidade de rebanho, dado o volume de pessoas infectadas.>
A cidade, porém, também foi um epicentro na segunda onda de mortes no Brasil, agora neste mês, com média diária de mais de cem mortos.>
Há diferentes hipóteses para o fenômeno, entre elas que os números sobre infectados não estavam corretos, que a variante que surgiu no local foi a causadora da nova onda ou que o período de proteção de um infectado é pequeno.>
Por outro lado, a imunidade de rebanho por meio de infectados é uma das hipóteses levantadas para o rápido declínio no número de novos casos na Índia, ocorrida a partir do fim do ano passado, meses depois de um rápido crescimento de casos confirmados.>
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