Publicado em 18 de julho de 2021 às 15:32
"Ei, mulher! O que está acontecendo?? Esse tempo de dor vai passar... Você não está sozinha. A violência e a opressão não vão te paralisar. Deus está cuidando de você!" >
Assim que disparou a mensagem em suas redes sociais, a cantora gospel Quesia Freitas, 36, começou a colher histórias de evangélicas que, como ela, foram alvo de violência doméstica, crime que afeta mulheres de todas as idades, religiões e classes. >
Há, contudo, particularidades na experiência cristã que, muitas vezes, viram fonte de silenciamento. >
Primeiro, há machismo embutido no discurso de alguns pastores que pregam a submissão feminina, baseados em versículos bíblicos como este do Novo Testamento: "Vós, mulheres, sujeitai-vos a vosso marido, como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher". >
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Mulheres de fé também relatam mais dificuldade de quebrar o ciclo de agressões por aprenderem em suas igrejas que uma oração bem feita é melhor do que um boletim de ocorrência registrado. >
O caso de Quesia extrapolou as paredes do templo quando, em novembro de 2020, viralizaram imagens do então marido a arrastando num shopping carioca. Reincidente, ele tinha por hábito dar tapas nela, puxar seu cabelo e até ameaçá-la de morte, segundo a cantora. >
A brutalidade pública começou num dia de folga para os dois, ela conta à Folha. "Fomos tomar café da tarde e não tinha o achocolatado que ele queria. Ali ele já se estressou bastante. Depois fomos ao cinema, e ele continuava alterado. Meio irritado. Aí, comprei os ingressos para surpreendê-lo, e ele se irritou mais." >
Quesia diz que lhe perguntou o que estava acontecendo. "Do nada ele gritou: 'Vamos embora agora!'", reproduz sobre o homem com quem casara um ano antes. "Foi como um amor à primeira vista, mas ele já demonstrava ser uma pessoa estressada. Implicou com meu trabalho, minha família, meus amigos." >
Até na Agape Church, sua igreja, o marido a proibiu de ir sozinha, afirma. "Pra ele, todo mundo estava dando em cima de mim." >
O que Quesia passou só veio à tona porque seu irmão, o também cantor gospel Juninho Black, denunciou o cunhado na internet. "Resolvi trazer a público o caso agora, depois de perdoar várias vezes. [...] Família, não quero que minha irmã caia nas estatísticas de feminicídio." >
Haveria uma complacência maior em ambientes cristãos com episódios como o de Quesia? Dois lançamentos literários sustentam que sim e veem a mesma Bíblia que prega o amor ser usada por pastores para abafar a violência contra as irmãs de fé. >
Dados com esse foco são escassos. A pesquisadora Valéria Vilhena, para sua tese de mestrado, levantou que quase 40% das atendidas na Casa Sofia, projeto social da Igreja Católica que acolhe vítimas de violência doméstica, se declaravam evangélicas. >
"Os discursos teológicos predominantes reforçam a necessidade de a mulher se submeter ao marido, uma submissão que implica, em geral, certa subalternidade", diz Marília de Camargo César, autora de "O Grito de Eva - A Violência Doméstica em Lares Cristãos" (Thomas Nelson). >
Segundo Marília, o capítulo 5 da carta de Paulo aos Efésios -na qual ele ensina que, como cristãos, devemos nos submeter uns aos outros- é deturpado para justificar a frouxidão de líderes religiosos no tema. "Todo cristão deve ter uma atitude de disposição para servir o outro. É um chamado para todos, homens, mulheres, filhos, pais, servos, patrões. Todos. Só que as igrejas pregam Efésios 5 apenas na parte que fala 'mulheres, sejam submissas a seus maridos'. O resto fica de fora." >
Seu livro traz relatos como o da professora Regina, 45: "Durante 30 anos eu aprendi isso. Está no livro de Efésios -eles nunca ensinavam o texto inteiro, só esta parte [da subjugação feminina]. É a frase mais cruel da Bíblia". >
Regina tinha 16 anos e nenhum namoro prévio quando conheceu o homem que viraria um marido que "queria ser o senhor da casa, controlar tudo, mandar na minha roupa, nos meus horários, saber com quem estava falando, onde eu tinha ido". Uma história similar à de Quesia e à de tantas outras mulheres. >
"Uma vez chegou do trabalho e colocou a mão em cima da TV para ver se estava quente. 'Ficou na televisão o dia todo?' Chamava-me de burra, de idiota", ela contou à autora. Piorava na cama. "Fica sem falar comigo o dia inteiro, mas à noite chega com aquela mão pesada. E vai fazendo o que quer, como quer. Sem carinho, sem abraço. E me invade rispidamente, dolorosamente. Você quer gritar, mas não grita." >
Um clipe de Cassiane, cantora de alto quilate no segmento, virou amostra da evangélica que, nas palavras de Marília, "têm somente em Deus a esperança de escape de uma realidade de agressões físicas e psicológicas". >
Em "A Voz", uma mulher ora de joelhos pelo marido alcoólatra, que bate nela e furta seu dinheiro para gastar na jogatina. Embalada pela letra sobre um Deus que "faz demônios saírem", a sofredora sai de casa sem deixar de pedir a Deus pela conversão do marido, que por fim vem. >
O vídeo repercutiu mal, e Cassiane acabou produzindo nova versão em que a protagonista liga para o 180 (número para denunciar violência contra a mulher). >
A tradutora Silvia, 67, já viu esse filme antes. Casou em 1978 com outro evangélico. "Eu não percebia, ou não queria perceber, o quão machista ele era. Coisas do tipo: batom vermelho é muito chamativo, jeans de cintura baixa... Nada disso 'ficava bem' para uma moça crente", diz à reportagem. >
Ele passou a ser agressivo também com os dois filhos que tiveram. "Quando eu interferia para que não batesse nas crianças, ele me batia", conta Silvia (seu nome foi trocado a pedido dela). >
Mesmo cientes dos abusos, o pastor e os outros membros da igreja silenciaram. "Para o pessoal da igreja isso era normal. Acontecia com muitas jovens. E não havia lugar para este tipo de reclamações, que pareciam irrelevantes." >
A escalada de violência culminou no dia em que "ele chegou transtornado em casa, me bateu e começou a dizer que ia me matar, como que drogado". Silvia pegou os filhos e foi embora de vez. >
Ouviu recriminações do entorno religioso. "Se seu marido a trata mal é porque ela está errando em alguns coisa e não estava sendo uma esposa cristã", escutou. "Mais de uma 'irmã' da igreja chegou a me perguntar o que de tão sério eu havia feito para ele tentar me matar." >
Para a tradutora, quando a cultura religiosa (que ela prefere nem classificar como cristã) "se omite em relação à opressão do patriarcado, ela favorece, sim, a violência doméstica". >
Em "A Bastarda de Deus" (Editora Noir), Júlio Chiavenato afirma que estão na Bíblia todos os preconceitos contemporâneos contra a mulher, a começar por Adão e Eva. Em Gênesis, após o casal comer o fruto proibido, Deus castiga a mulher para a eternidade: "Com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará". >
O autor reproduz passagens bíblicas para recompor uma visão tirânica sobre as mulheres. "A ideia de que a 'filha mulher' é para casar é tão antiga quantos as velhas escrituras hebraicas", diz. Vide este trecho de Eclesiástico: "Casa a tua filha e terás concluído uma grande tarefa". >
O desprezo pela figura feminina era tamanho que personagens bíblicos ofereciam filhas virgens para salvar homens, aponta Chiavenato. >
É o que Ló faz quando uma turba bate à sua porta pedindo que entregue dois anjos que vieram lhe pedir abrigo: "Traga-os para nós aqui fora para que tenhamos relações com eles". Ao que um dos protagonistas do Antigo Testamento propõe: "Olhem, tenho duas filhas que ainda são virgens. Vou trazê-las para que vocês façam com elas o que bem entenderem". >
Quesia, a cantora agredida no shopping, escolhe o Deus do amor para guiar sua vida. Com o irmão, idealizou o projeto Superei, "da qual sou apenas porta-voz de mulheres que trazem suas histórias". >
A artista diz que ajuda a conectar essas mulheres com quem pode ajudá-las, como empresários que dão oportunidades para elas terem autonomia financeira. Ela mesma, especialista em megahair, já deu cursos de graça para outras aprenderem o ofício.>
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