A chamada “PEC da Blindagem” trouxe à cena política e jurídica brasileira um intenso debate sobre os limites da imunidade parlamentar e o equilíbrio entre os poderes. Seu objetivo central era restringir ou condicionar a atuação do Supremo Tribunal Federal, do Ministério Público e de órgãos de investigação em relação a parlamentares e altas autoridades da República. Defensores a apresentavam como medida necessária para evitar supostos abusos, enquanto críticos a viam como uma tentativa de criação de privilégios incompatíveis com o Estado Democrático de Direito.
Nesta quarta-feira (24), a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado rejeitou a proposta, o que representa uma vitória para as vozes que alertavam para os riscos que ela trazia ao sistema republicano. Ainda que a rejeição na CCJ não impeça totalmente a retomada do tema em futuras legislaturas, o resultado indica uma clara resistência institucional à ampliação de imunidades e ao enfraquecimento dos mecanismos de controle democrático.
Os proponentes afirmavam que a PEC visava proteger a independência do Poder Legislativo, garantindo que deputados e senadores pudessem exercer seus mandatos sem o risco de perseguições políticas. Evocavam a imunidade prevista no art. 53 da Constituição Federal, que assegura inviolabilidade civil e penal por opiniões, palavras e votos, além de impor restrições à prisão e ao processo penal de parlamentares.
Segundo essa visão, a proposta não criaria privilégios, mas apenas reforçaria a proteção já existente, evitando que medidas judiciais cautelares, prisões preventivas ou quebras de sigilo fossem utilizadas como instrumentos de pressão política. Para os defensores, a medida fortaleceria a separação de poderes, garantindo que o Legislativo não fosse tolhido por interferências externas.
Não por acaso a proposta recebeu o apelido de “PEC da Blindagem”. Para seus opositores, ela enfraqueceria a democracia e comprometeria o princípio republicano, criando uma casta de cidadãos acima da lei. Enquanto qualquer brasileiro pode ser investigado e processado, parlamentares passariam a contar com obstáculos adicionais, o que poderia inviabilizar a responsabilização de condutas graves.
A crítica central era o risco de impunidade institucionalizada. Em vez de reforçar o controle democrático, a PEC poderia fragilizar os mecanismos de fiscalização, reduzindo o alcance do Ministério Público e limitando o poder de decisão do Judiciário. Esse cenário comprometeria o delicado sistema de freios e contrapesos, estruturado pela Constituição de 1988 justamente para evitar abusos e assegurar a harmonia entre os poderes.
Além disso, ao sinalizar que parlamentares teriam um “escudo” especial contra investigações, a proposta ampliaria a percepção social de que a política se converte em espaço de privilégios, distanciando-se do ideal de serviço público. A confiança da sociedade, já fragilizada, sofreria novos abalos.
É inegável que o regime democrático se sustenta na independência entre os poderes. Contudo, independência não se confunde com impunidade. O mandato parlamentar é expressão da soberania popular, mas não pode se transformar em salvo-conduto para práticas ilícitas.
A Constituição consagra um sistema de equilíbrio: o Legislativo legisla e fiscaliza, o Executivo governa e o Judiciário controla a legalidade dos atos. Blindar autoridades de forma excessiva quebraria esse equilíbrio, comprometendo a própria essência da República, fundada no princípio de que todos são iguais perante a lei.
Diante da gravidade da discussão, a sociedade civil, a imprensa e a advocacia devem continuar atuando com firmeza. É imprescindível ampliar o debate público, esclarecer riscos e pressionar para que reformas constitucionais não sejam usadas como instrumentos de autoproteção.
A Ordem dos Advogados do Brasil, instituição essencial à justiça, tem responsabilidade especial nesse contexto. Cabe à OAB reafirmar os compromissos com a Constituição, com a defesa da democracia e com a necessidade de que nenhum poder se sobreponha aos demais em detrimento da cidadania.
A “PEC da Blindagem” não era apenas uma alteração técnica no texto constitucional. Ela simbolizava um embate profundo sobre o modelo de República que queremos. De um lado, a legítima preocupação com excessos na atuação judicial; de outro, o risco real de se criar uma imunidade desproporcional, que minaria a confiança social na política e afastaria o Brasil dos valores republicanos.
A rejeição da proposta pelo Senado representa um sinal importante de que as instituições permanecem vigilantes diante de tentativas de retrocesso. Mais do que nunca, é hora de reafirmar que ninguém está acima da lei — nem mesmo aqueles que a escrevem. A democracia se fortalece não com privilégios, mas com responsabilidade, transparência e igualdade.
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