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É subsecretário de Segurança Urbana do Município de Vitória. Pós-graduado em Direito pela Fundação Getúlio Vargas

Lei Seca: apelido da lei atrapalha mudança comportamental da sociedade

Na verdade, traz um efeito negativo para o engajamento na causa. Não são raras as vezes que presenciamos pessoas próximas que bebem e dirigem sem o menor constrangimento

  • Helvio Souza Alves Junior É subsecretário de Segurança Urbana do Município de Vitória. Pós-graduado em Direito pela Fundação Getúlio Vargas
Publicado em 06/07/2023 às 13h59
Policiais militares durante trabalho na blitz da Lei Seca em Viana
Policiais militares durante trabalho na blitz da Lei Seca em Viana . Crédito: Carlos Alberto Silva

No ano de 1920, ainda no século passado, os Estados Unidos da América aprovava a chamada Lei Seca, período em que era proibida a fabricação, o comércio, o transporte, a importação e exportação de bebidas alcoólicas no país. Naquela época o consumo exagerado passou a ser visto como um problema, especialmente entre os trabalhadores das fábricas, onde os proprietários temiam que o consumo excessivo levasse a acidentes e queda na produtividade fabril.

O consumo de bebidas alcoólicas exagerado também levou ao aumento da violência e criminalidade urbana, motivando ainda mais a implantação da medida.. A restrição durou 13 anos, até  1933, quando percebeu-se que não surtiram os efeitos desejados. O elevado consumo de álcool, adquirido no mercado negro, mais forte e de baixa qualidade, levou a milhares de mortes por problemas de saúde, aumentando os casos de alcoolismo, além do aumento da violência gerada pelo lucrativo comércio ilegal dominado pelo crime organizado de então.

No Brasil, em 19 de junho de 2008, foi publicada a nossa Lei Seca. Alterando a Lei 9.503 de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), a Lei 11.705 teve por escopo inibir o consumo de bebida alcoólica por condutor de veículo automotor, trazendo também restrições para a venda e consumo de bebidas alcoólicas, na faixa de domínio de rodovia federal ou em terrenos contíguos à faixa de domínio com acesso direto à rodovia.

A lei também obrigou os estabelecimentos comerciais em que se vendem ou oferecem bebidas alcoólicas a estampar, no recinto, aviso de que constitui crime dirigir sob a influência de álcool.

Alterando o artigo 276 do CTB passou a considerar qualquer concentração de álcool por litro de sangue, sem qualquer índice de tolerância, sujeitando o condutor às penalidades previstas para quem for flagrado dirigindo veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência. Com essas alterações, estabeleceu-se a alcoolemia zero e impôs penalidades mais severas, instituindo inclusive multa para os estabelecimentos comerciais citados anteriormente, que violassem o disposto na nova regra legal.

Logo de início apelidaram tal instituto de Lei Seca, compondo uma imagem negativa que em nada contribuiu e permanece não contribuindo para o engajamento da sociedade na mudança de comportamento no que diz respeito à mistura de álcool e direção. Sobretudo entre os motoristas mais jovens que figuram como as maiores vítimas de acidentes de trânsito.

Positivamente, depois da publicação das novas medidas, as mortes em acidentes automobilísticos causados pela mistura de álcool e direção reduziram em 32% no país entre os anos de 2010 e 2021. Esses dados foram divulgados através de estudo do CISA (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool), vinculado ao Ministério da Saúde.

Porém, o mesmo Centro trouxe a informação de um significativo aumento de 34% no mesmo período nos índices de internação. Somente no ano de 2021 foram contabilizadas mais de 75.900 hospitalizações com cerca de 10.800 óbitos ocasionados pela prática perigosa e ilegal de dirigir sob a influência de álcool.

Os investimentos em fiscalização e educação aumentam ano após ano, mas ainda se reconhece que tem espaço para ampliar. Atualmente utilizamos equipamentos com tecnologia avançada que, em poucos segundos, conseguem constatar de forma prévia a presença de álcool no ar expelido pelos pulmões sem a necessidade de uso do bafômetro tradicional.

O aumento das abordagens tem relação direta com a redução dos números de acidentes provocados pelo consumo de álcool e consequentemente com a diminuição dos números de mortos e feridos por tais acidentes. A “retirada” do trânsito do condutor alcoolizado antes de um provável sinistro nos permite afirmar que nesse momento estamos salvando várias vidas, inclusive a dele próprio.

Quanto maior a fiscalização, menos acidentes. A recusa também aumentou ao longo desses anos, porém com o advento da Lei 13.281 de 2016, passou-se a ser tratada com o mesmo rigor do flagrante de condução sob a influência de álcool, capitulada como infração gravíssima, com penalidade de multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses. Isso tudo sob a inteligência do artigo 165-A do Código de Trânsito Brasileiro.

A tão falada Lei Seca acaba de completar quinze anos e os flagrantes de condução de veículo automotor sob efeito de álcool, continuam ocorrendo com bastante frequência nas vias e rodovias das cidades. O aumento da fiscalização e as campanhas educativas ainda não inibem uma parcela significativa de condutores que insistem na prática criminosa.

O apelido tanto quanto pejorativo não contribui, como dissemos acima, para uma mudança comportamental da sociedade. Pelo contrário, na verdade traz um efeito negativo para o engajamento na causa. Não são raras as vezes que presenciamos pessoas próximas que bebem e dirigem sem o menor constrangimento.

Não raro também são as notícias de acidentes e mortes causadas tendo como principal fator a condução de veículo automotor sob a influência de álcool ou outras drogas. É preciso se indignar com tal conduta. Os infratores que ainda insistem em desrespeitar a lei precisam ser penalizados e a sociedade precisa enxergar tal comportamento como criminoso, repulsivo. Indignar-se quando presenciar “alguém ao lado” dirigindo depois de consumir bebida alcoólica.

É necessário um esforço coletivo da população. Sozinho o poder público não vence essa guerra. E lembrando, a “lei seca” é para a condução de veículo automotor. Por ora, ninguém está proibido de consumir bebida alcoólica, desde que longe da condução de um automóvel. Se for beber, não dirija. Essa é a melhor escolha.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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