Autor(a) Convidado(a)
É advogado, doutor em Direito. professor da FDV

Fux e o VAR: o que é ser um garantista de verdade

É triste dizer, mas o gol é ilegal, Fux está impedido. Não sei por qual razão Fux votou assim, mas sei por qual razão não foi. Definitivamente, não foi por ser garantista

  • Israel Domingos Jorio É advogado, doutor em Direito. professor da FDV
Publicado em 12/09/2025 às 15h52

Sai um gol no fim do jogo. Gol da vitória. A torcida grita, explode em emoção. A taça já está praticamente na mão. Eis que, alguns instantes depois, todo aquele êxtase é interrompido por um gesto do juiz, que faz um retângulo imaginário com os indicadores no ar. VAR. A sigla significa Video Assistant Referee (Árbitro Assistente de Vídeo) e os que acompanham futebol já sabem: a jogada será checada em detalhes, o que torna elevada a chance de anulação, caso exista qualquer irregularidade.

Durante alguns segundos ou poucos minutos, tudo fica em suspenso. Um mundo de gente torcendo pela confirmação, outro tanto rezando pela anulação. Eis que vem o veredicto. Ao analisar mais cuidadosamente, por meio de diversas câmeras, ângulos, velocidades e zooms, a árbitro conclui que a bola tocou a mão do atacante e isso o ajudou a dominá-la. Gol anulado. Estaca zero.

É a vida. Houve uma irregularidade. Um detalhe pequeno. Poderia ter passado despercebido. O gol seria válido, mas injusto. Que infelicidade daquele jogador, que quase marcou o gol da sua vida e se consagrou como ídolo. Mas, pelo bem da justiça, ainda bem que houve checagem. Quando é assim, muitos se frustram, mas quase todos entendem. Diferente quando o juiz anula o gol porque, em um lance faltoso fora da jogada, outro jogador atacante daquele time deu um soco no rosto do adversário. Essa anulação causa mais revolta.

O que aquele atacante tinha na cabeça? Foi-se o tempo em que seria minimamente viável que qualquer atitude tomada dentro de um campo de futebol pudesse passar sem ser notada. Com a tecnologia, a definição, a quantidade de câmeras e de ângulos possíveis, como pode aquele jogador ter chegado a crer na chance de não ser descoberto e punido? Fazer algo escancarado, assim, na frente das câmeras, ou seja, do mundo todo? Será, mesmo, que ele achou que não seria descoberto?

Parece que não é só no futebol que é assim. O ministro Luiz Fux, ao proferir seu interminável voto na sessão de julgamento do dia 10 de setembro, pronunciou-se de modo crítico, incisivamente divergiu dos colegas do STF, citou ícones da dogmática penal liberal e assumiu postura garantista (adjetivo privativo de quem é defensor dos direitos e garantias fundamentais individuais previstos pela Constituição Federal).

Foi automaticamente visto como a voz da resistência, um farol da razão, um símbolo republicano do bom senso e da moderação, uma barreira de contenção dos exageros punitivistas e das perseguições políticas (Lawfare). Muitos comemoraram a grata surpresa, tal qual comemorariam o gol do seu time do coração. Uns, porque são “bolsonaristas” ou “patriotas”; outros, porque estão fartos com abusos e arbitrariedades judiciais; e alguns poucos, porque se animaram com a imagem de um novo (e destemido) defensor do procedimento, das formalidades, da legalidade estrita e dos direitos e garantias fundamentais na Suprema Corte brasileira. “Chama o VAR”.

É triste dizer, mas o gol é ilegal. Fux está impedido. E não é por pouca coisa. Volta tudo. Há teses, evidentemente, para explicar o teor inusitado desse voto. Pura vaidade. Tentativa de manter o visto estadunidense. Pretensões eleitorais futuras. Não posso fingir conhecer qualquer razão específica, e seria leviano e injusto afirmar qualquer delas. Não sei por qual razão Fux votou assim. Mas sei por qual razão não foi. Definitivamente, não foi por ser garantista.

Fux tem um histórico próximo do tenebroso como magistrado em causas criminais. Detém, simplesmente, o menor índice de concessão de liminares e ordens de habeas corpus no STF (menos de 1%). No exato mesmo dia do “voto garantista”, publicaram-se decisões recentes de Fux negando a aplicação do princípio da insignificância e mantendo condenações em casos chocantes (subtração de cinco desodorantes, em um processo, e de um engradado de cervejas pela metade, em outro).

Até juízes “antigarantistas” (ou “garantistas integrais”, como se gostam de autoproclamar os que acham bacana o adjetivo, mas não querem pagar o preço por serem realmente garantistas) absolvem acusados assim. E onde estava o “garantismo” de Fux quando votou pela condenação dos “pé-rapados” e aposentados do oito de janeiro? Onde estava seu rigor técnico e seu apego às regras procedimentais quando refutou as mesmas teses de nulidade que, agora, em rede nacional, resolveu solitariamente acolher?

Bernardinho, um dos treinadores mais bem-sucedidos da história do esporte coletivo, diz que todos querem ser medalhistas olímpicos, mas poucos estão dispostos a pagar o preço para sê-lo. Treinar oito horas por dia, fazer dietas restritivas por anos a fio, dormir cedo, não ingerir álcool. Ganhar a medalha é a consequência de uma vida de devoção, dedicação, esforço, compromisso.

Com todo o respeito, Fux não merece a medalha de “garantista”. Não é justo que lhe seja dada por uma atitude absolutamente isolada e, por isso mesmo, incompreensível, que denuncia muito mais falta de coerência do que verdadeiro apego ao nosso valioso sistema de direitos e garantias fundamentais.

Ministro Luiz Fux, durante julgamento de Bolsonaro no STF
Ministro Luiz Fux, durante julgamento de Bolsonaro no STF. Crédito: Gustavo Moreno/STF

As incontáveis vezes em que demonstrou total insensibilidade a princípios minimalistas do Direito Penal e a formalidades processuais penais não serão esquecidas por esse lampejo supostamente liberal e convenientemente midiático.

Fux é faixa vermelha de jiu-jítsu. Bem sabe o quanto é difícil alcançar esse raro mérito. E sabe que de nada vale ter um pano colorido à cintura sem dominar, verdadeiramente, as técnicas e a filosofia dessa arte marcial. Do mesmo modo, não é garantista quem se autointitula, ou quem cita Ferrajoli, Zaffaroni ou Beccaria.

Garantista é quem entende que os fins não justificam os meios; que o procedimento é sagrado porque é imprescindível para a segurança jurídica; que uma condenação fora das estritas regras do jogo, por mais que possa até ser justa, presta um desserviço à democracia e é inadmissível; enfim, que o Direito Penal é um mal necessário, e, como tal, deve ser usado com equilíbrio e parcimônia, para as situações efetivamente importantes e sem pretensões políticas, econômicas, religiosas ou midiáticas.

Não estamos, aqui, discutindo atributos intelectuais ou morais do ministro Fux. Não estamos julgando suas intenções. A análise é técnica e histórica. Se, por uma curiosa coincidência, ele escolheu o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro para dar uma guinada radical em sua atuação como magistrado e para passar a ser efetivamente garantista, não posso censurá-lo. Nunca é tarde para lembrar-se das trevas pré-iluministas e para tomar como norte os pilares humanistas da liberdade e da igualdade. Se é o caso de Fux, o tempo vai dizê-lo. E não tardará.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

A Gazeta integra o

Saiba mais

Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.

Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.