Dois advogados analisam o voto de Fux no julgamento de Bolsonaro

Ministro do STF votou pela absolvição de Jair Bolsonaro das acusações da Procuradoria-Geral da República sobre tentativa de golpe de Estado

Publicado em 12/09/2025 às 11h30
Ministro Luiz Fux, durante julgamento de Bolsonaro no STF
Ministro Luiz Fux, durante julgamento de Bolsonaro no STF. Crédito: Gustavo Moreno/STF

Fux e o dilema da integridade

Raphael Boldt
É pós-doutor em Direito Penal (Goethe-Universität) e em Criminologia (Universität Hamburg), Professor da FDV e advogado criminalista

O julgamento do núcleo central da trama golpista, que envolve Jair Bolsonaro e outros réus acusados de planejar a ruptura institucional de 2022, trouxe à tona não apenas a gravidade dos fatos, mas também contradições relevantes no posicionamento do Supremo Tribunal Federal. O voto do ministro Luiz Fux, proferido recentemente, tornou-se o exemplo mais emblemático desse dilema. Ao questionar a competência da Primeira Turma, afastar a imputação de organização criminosa e reconhecer nulidades oriundas do cerceamento ao direito de defesa, Fux sinalizou uma mudança de postura que contrasta fortemente com sua trajetória no tribunal, marcada por uma perspectiva visivelmente antigarantista. Basta notar que em 2024 Fux negou 99,3% dos habeas corpus que julgou.

Durante anos, o ministro foi reconhecido por seu rigor em matéria penal. Sua atuação na Lava Jato consolidou a imagem de um juiz linha dura, avesso à tutela de direitos e garantias fundamentais dos acusados. Da mesma forma, nos primeiros julgamentos relacionados ao 8 de janeiro, Fux votou acompanhando majoritariamente o relator Alexandre de Moraes, sem acolher, por exemplo, a tese de nulidade por incompetência do STF ao condenar os inúmeros acusados “anônimos”, considerados meros executores da invasão.

É nesse contraste que reside o dilema. Para réus socialmente invisíveis, desconhecidos e sem protagonismo político, nunca se mencionou autores como Luigi Ferrajoli e Eugenio Raul Zaffaroni, referências importantes do pensamento crítico e humanista no direito penal. Já diante do núcleo central, composto por lideranças de maior envergadura, Fux adota posição mais leniente, invocando garantias processuais e relativizando a acumulação de crimes. Essa inversão não passa despercebida. A integridade das decisões judiciais depende de coerência, não se pode simplesmente e seletivamente exigir rigor contra uns e oferecer benevolência a outros.

O problema, destaque-se, não está em um eventual voto mais garantista. Esse deveria ser a regra nos julgamentos criminais. O debate sobre nulidades, a amplitude da imputação penal e a necessidade de individualização de condutas é legítimo e necessário em um tribunal. O que fragiliza a Corte é a oscilação brusca de fundamentos, que gera a impressão de que a balança se inclina de acordo com a centralidade dos acusados ou com a conveniência política do momento, como bem nos lembra a consagrada expressão “in Fux we trust”, cunhada pelo ex-juiz Sergio Moro.

Se o Direito deve ser interpretado como integridade, de modo que cada decisão se harmonize com a cadeia de precedentes anteriores, quando essa lógica é rompida, a legitimidade institucional se desgasta. O voto de Fux, ao se afastar de seus posicionamentos consolidados justamente no julgamento mais simbólico da tentativa de golpe, expõe o Supremo a críticas de casuísmo e compromete a previsibilidade que sustenta sua autoridade.

O STF deve atuar com responsabilidade frente aos ataques à democracia, sempre com respeito às regras do jogo processual. Mas essa resposta não pode renunciar à consistência, sob pena de enfraquecer o próprio tribunal que se pretende guardião da Constituição. O dilema que surge do voto de Fux é o da integridade: sem coerência, a Justiça corre o risco de parecer menos um exercício de princípios e mais uma reação às circunstâncias. Resta a esperança de que, no futuro, a súbita moderação de Fux não seja privilégio de alguns réus, mas um padrão estendido a todos aqueles que batem à porta da Justiça.

Voto de Fux pode redefinir limites do poder punitivo

Rodrigo Paes Freitas
É  advogado e sócio do Mendonça & Machado Advogados.

O ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), na última quarta-feira (10), surpreendeu o país ao votar pela absolvição de Jair Bolsonaro e alguns de seus aliados das acusações da Procuradoria-Geral da República sobre tentativa de golpe de Estado.

Em contrapartida, votou pela condenação de Mauro Cid e Walter Braga pelo crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito.

Com essa posição, Fux abriu divergência em relação a seus pares - os ministros Alexandre de Moraes (relator do caso) e Flávio Dino que votaram pela condenação de todos os réus pelos crimes que são acusados: tentativa de golpe de Estado, participação em organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado de Direito, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

O voto do ministro Luiz Fux teve ampla repercussão nacional e internacional não apenas pela sua duração de 14 horas, mas principalmente pelo teor garantista. Nesse ponto, o voto abre precedente positivo em defesa da limitação do poder punitivo estatal sobre os indivíduos ali julgados e, por tabela, a todos os brasileiros, independente das ideias adotadas.

Sobre as matérias preliminares, aquelas que dizem respeito a formação da relação processual penal, Fux entendeu que o STF é incompetente para processar o caso, o que resultaria na anulação do processo. Também afirmou que, se for o caso, a competência seria do Plenário (compostos pelos 11 ministros) e não pela Turma (composta por 5 ministros), que atualmente julga o caso.

Quanto ao mérito do julgamento, isto é, se existem provas da prática dos crimes imputados, o ministro destacou que “ninguém pode ser punido pela cogitação” e que "os atos preparatórios escapam, em regra, a punição da lei penal. Salvo quando, em si mesmo, [eles] constituem figuras delituosas". Como não houve início de execução, não há que se falar em tentativa. Realmente não é razoável punir o ato de pensar, ainda que fosse o caso.

Sob as repercussões políticas, o voto de Fux expôs divergências internas no Supremo, as quais são saudáveis para as liberdades individuais, de expressão e a opinião política. Como o STF acaba, inevitavelmente, tomando decisões que afetam os mais amplos aspectos da vida da sociedade brasileira e da livre iniciativa, o dissenso entre seus membros é essencial e serve como limitador de poder.

A pluralidade de votos divergentes no STF funciona como um mecanismo de freios e contrapesos interno dentro do próprio Poder Judiciário, o que serve justamente ao nobre propósito de limitar o poder do Estado.

A aplicação de fundamentos técnicos e a ausência de unanimidade em um julgamento tão emblemático como é a Ação Penal nº 2668 sinalizam um marco importante de preservação do equilíbrio entre Estado e o indivíduo.

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