A proximidade do feriado nos remete sempre à ideia de uma oportunidade para distrair-se, descansar e romper a rotina. No entanto, para além desse aspecto lúdico, cada ida e vinda nas estradas brasileiras é muito mais do que um passeio automotivo: revela traços profundos de nossa sociedade. Não tanto pelos pavimentos esburacados ou pela total falta de asfalto: fala mais do nosso comportamento quando temos um veículo à mão e um Estado ausente para nos reprimir e vigiar.
Em um desses feriados, o que mais me chamou atenção, enquanto trafegava e desviava de um buraco ou outro na estrada repleta de carros, foi observar uma prática típica nestas situações de trânsito intenso provocado por dias seguidos de folga: o uso indiscriminado do acostamento como via de passagem.
Foi o trânsito apertar, ainda no início do caminho, e o primeiro carro passou sorrateiro — ou nem tanto — pelo acostamento. Veio outro, mais outro e tantos mais. Enquanto seguia pela via de rolagem lotada, em passos lentos — daqueles de fazer inveja a uma tartaruga —, cogitava o certo e o errado de tudo isso.
Que fique bem claro, mesmo para quem não saiba: trafegar no acostamento é infração de trânsito. Mas, para além de infração legal, naquela hora me ocorreu que existe uma questão moral subjacente a essa prática comum nas estradas brasileiras lotadas: a relutância do motorista à minha frente, que ziguezagueava entre ir ou não ir para o acostamento, parecia expressar muito mais do que o simples medo de sofrer uma multa.
O acostamento como dilema ético e o mito “jeitinho” brasileiro
O uso e abuso do acostamento é um exemplo prático da aplicação do imperativo categórico de Kant. Ao se universalizar a escapada para o acostamento, o trânsito piora na via de rolamento e, ao fim, no próprio acostamento. Todos perdem. Se isso é verdade, na concepção kantiana de moral fundada na razão, a escolha do acostamento seria um ato imoral.
Mas, sem querer desrespeitar Kant, seria possível defender o uso do acostamento como prática social por vezes necessária nas precárias estradas de nosso país? Nessa hora de aperto, é justo pensar que somos guiados por um senso racional prático, condicionado como resposta a um meio ambiente social hostil?
Para muitos, sim. “A culpa é do poder público (sempre ele o vilão de todas as horas), que não duplicou a via”, dizem. Afinal, o trânsito no local é conhecido há anos e poderia ser melhorado com planejamento e investimento. E vejam como a pista é cheia de buracos e falta sinalização adequada. Nada parecida com as “highways” americanas e as “autobahnen” alemães. Outros dirão: “Está todo mundo indo pelo acostamento, não sou eu que vou ficar para trás”.
A questão, todavia, é mais profunda e vai além da perigosa mania de transferir a responsabilidade do indivíduo para a coletividade. Usar o acostamento poderia, neste caso, representar um efeito da lógica de sobrevivência que guia nossa estrutura de pensamento, tendo como causa nossa sociedade marcadamente desigual e, estruturalmente, excludente: que, em alguma medida, se reflete na má qualidade das estradas. Entramos, assim, no debate sobre o “jeitinho brasileiro”.
É bem verdade que quando vemos situações de descumprimento reiterado de regras, de flexibilização de normas e do tratamento privilegiado de poucos, somos, imediatamente, inclinados a culpar o “jeitinho brasileiro”. Como se fosse uma marca característica inata de nossa sociedade a tendência de fazer curvas em leis e buscar soluções, no mínimo, informais para problemas diários.
Mas parece forçado dizer que a ida furtiva ou descarada ao acostamento é uma forma de sobrevivência na selva do trânsito de nossas estradas maltratadas. Essa mania de culpar o Estado também serve para obscurecer, muitas vezes, os reais problemas de nossa sociedade, como destaca Jessé Souza, crítico mordaz da expressão “jeitinho brasileiro”.
Segundo Jessé Souza, o “jeitinho” não é uma marca essencial do brasileiro, mas fruto de uma construção teórica equivocada do que seria o modelo de identidade nacional. Esse arquétipo teria sido construído a partir dos escritos de Gilberto Freire, em "Casa Grande Senzala", passando pelo “homem cordial” de Buarque de Holanda (o “Sérgio”, não o “Chico”), culminando com a massificada reprodução tanto no meio acadêmico como no senso comum do dia a dia.

Para Souza, a criação deste estereótipo de brasileiro, supostamente vocacionado à supervalorização das relações pessoais em detrimento de agir de acordo com as previsões formais e legais, é, afora historicamente impreciso, epistemologicamente incapaz de explicar os problemas sociais brasileiros.
No final, essa crença de que somos “menos honestos” e mais personalistas do que os outros acaba servindo para reforçar ou justificar um mau comportamento. Funciona para depreciar nossa autoestima, formando uma falsa compreensão de nós mesmos, o que retira parte de nossa força para agir de outro modo.
Entre o condicionamento social e a tomada de responsabilidade
Se há ou não o “jeitinho brasileiro”, parece errado justificar todos nossos desvios, culpando um suposto – e talvez real- condicionamento social que enxerga desvantagem e falta por todo o lado. Tem horas que nos justificamos do caos que nós mesmo criamos.
A tal “lei do Gerson” – de querer levar vantagem em tudo - não é ferramenta, exclusiva dos “donos do poder” para conquistarem ainda mais privilégios, nem tampouco um artifício da minoria para reparar as mazelas de uma sociedade desigual. Em certa medida, ela oprime mais do que ajuda. O ideal seria que não precisássemos nos valer de tais recursos e atalhos e que cada um olhasse menos para os outros e mais para si mesmo, assumindo a responsabilidade por seus próprios atos e escolhas.
No fim das contas, ainda há motivos para esperança: afinal, a maioria não faz isso... por mais relativista que possa ser a “regra da maioria” (mais isso é um tema para um outro texto), neste caso, ela parece estar no caminho. Sigamos em frente.
Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rápido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem.
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta.