Os corredores alongados são reconstruídos pela memória do menino, eterno inquilino deste adulto que ainda pratica travessuras. Intermináveis retas e suas esquinas concretas que conduziam às salas de aula como terras do sem fim (uma criança carrega sempre o olhar infinito sobre as coisas finitas). As paredes adornavam o mofo das coisas eternas, aroma que agora revivo com travo nostálgico. O passado bate à porta, deixo o convidado entrar.
O Grupo Escolar Marcondes de Sousa trocou seu pré-nome, mas ainda é chamado de Grupo pelos muquienses. A escola é uma espécie de entidade preservada, guarda o espírito de um tempo e todas as gentes que passaram por suas carteiras e quadros de giz.
O espirito dos mortos, a ausência sentida dos vivos, a minha ausência. O cronista guarda igualmente a intocada memória dos dias e horas passados ali. Dois afetos: as professoras dona Zezé, a dócil, e dona Laura, a brava, a quem adorava pelos temperamentos contrários. E era recíproco. O relógio do tempo é de uma doçura implacável.
A gastura do giz nos dedos até agora, neste momento em que escrevo, ganha as teclas em arrepios nervosos. O calo no dedo médio ainda persiste nestas décadas todas pelas tantas linhas escritas no papel almaço e inscritas no espírito poético que me move e me levou ao reino da escrita, ao pódio dos representantes das artes desta terra muquiense, capixaba, brasileira.
Foi ali, nas salas de aula, nos longos corredores onde aprendi um tanto das pequenezas, altitudes e atitudes humanas. Trago, indelével na memória, o cheiro do mingau de aveia feito em panelões pelos braços fortes da Malva, a cozinheira da escola. O brilho do suor ornando a testa de quem trabalhava duro pra alimentar a garotada.
De família classe média, não conseguia alcançar porque alguns colegas da escola pública tinham mais fome que eu. Devoravam pratos de mingau de fubá, a deliciosa simplicidade da Malva. As disparidades sociais ainda não eram pauta do filho de Alzira e Jacy. Convivia com os meus como iguais me abstendo das diferenças entre classes, como ensinaram meus pais, que ascenderam socialmente sem esquecer a origem na dureza da roça.
E Malva fazia parte dessa convivência. Ela colou em mim a sua doçura destemida e lembro de visitá-la na casa da Boa Esperança, onde sempre havia alguma surpresa pra adoçar o paladar do menino cheio de vida exalando carinho pela mãe preta. Ela vive em mim com uma lágrima feliz espreitando a beirada do olho. A saudade que tem sabor de mingau de aveia, cheiro do pé de jasmim e toque de mãos calejadas, sentidos aguçados pela Malva, a cozinheira com rosto de lua cheia e amêndoas oleosas no olhar.

Como ela, mais dona Zezé e dona Laura, o Grupo está nas minhas digitais poéticas, nas epifanias teatrais, no senso de humor, na liberdade do meu vir a ser, ainda que cerceada pela educação datada daqueles tempos. O menino resistiu, guardou, resguardou-se para imprimir o tom do seu futuro.
Uma escola não deveria servir a outra função se não a de dar chão e céu, sombra e sol pras crianças. Junto com o rigoroso - flexível, porém - pulso familiar, o Marcondes de Sousa serviu-me de voz guia e farol pra quem iria me transformar. Eu cheguei no futuro e ainda estou aqui.
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