Autor(a) Convidado(a)
É advogado e presidente da Comissão de Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM-ES)

Coragem da criança em apontar abuso não pode ser anulada pela covardia da família

É preciso confiar na vítima e permitir que investigações evoluam, considerando que o procedimento é sigiloso e discreto. Nada justifica a omissão nesses casos

  • Raphael Câmara É advogado e presidente da Comissão de Infância e Juventude do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM-ES)
Publicado em 07/05/2021 às 02h00
Lei Federal garante “escuta especializada” da criança em casos de violência sexual
Lei Federal garante “escuta especializada” da criança em casos de violência sexual. Crédito: Pixabay

“Pai, o tio mexeu aqui, ó”. Essa é a primeiríssima hora, o momento em que o mundo, as leis, os afetos perdem o sentido e a razão. Perdem-se todos. É o tempo de Planck em sua pior versão, tão rápida quanto destruidora. É o início ou o fim? Para o primeiro ouvinte – a mãe, o pai, a avó, o professor – é o fim. Isso mesmo: o paradoxo. É o fim porque a sensação de culpa e fracasso é tão forte que raramente saem ilesos, sequer aguentam-se de pé.

Os testemunhos são muitos e tenho certeza de que o leitor, agora, está a imaginar a dor de quem viveu ou, é possível, a própria dor. Mas para a criança é o feliz começo, o ritual de alívio que preparou com imensa angústia antes de fazer escapar a indicação da violência sexual que sofreu. Ali, naquele momento, ditas as poucas palavras refletidas nos limites ainda mais dolorosos da pouca maturidade, a criança confia na salvação do seu corpo e dá início à saga jurídica que se ela conhecesse minimamente, por certo guardaria o silêncio por mais tempo.

Mas é preciso iniciar. Sempre sugiro que o ouvinte acolha imediatamente a criança, tratando-a com carinho e seguindo a rotina da casa sem maiores atropelos naquele momento tão agudo. O desenho é uma ferramenta importante para a criança e pode constituir elemento indiciário fundamental no curso das investigações. Permitir – sem forçar – que a criança desenhe o que está no coração, eis aí um mecanismo inicial. Escrever também, caso a criança saiba e queira. Sem qualquer pressão, mas apenas como estímulo ao alívio. A rotina deve ser mantida até aqui.

Mas terá valido a pena o esforço da criança? Isso basta para sentir-se segura e acolhida? Não, não basta. A coragem da criança não pode ser arrefecida com a covardia dos pais, buscando arremedos para que o filho esqueça e a vida siga. Isso não vai acontecer e a conta vai chegar rápido, e vai chegar para a criança, hoje adolescente. Denuncie imediatamente!

A Lei Federal nº 13.431/2017 garante a “escuta especializada” da criança já na delegacia, ou em qualquer organismo que componha a rede de proteção da infância, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade, em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência. Sim, isso existe no Espírito Santo e é eficaz.

A família também pode solicitar medidas protetivas em favor da criança, como o afastamento do agressor da casa, do convívio, da presença ou dos ambientes frequentados pela vítima, como escola e igreja. O agressor pode ser preso também, a depender das circunstâncias do caso.

De toda forma, se não fui bem claro pretendendo sê-lo: em casos de abuso, não se acovarde e tampouco confie nos seus instintos. Confie na criança e permita que as instituições evoluam nas investigações, considerando que o procedimento é sigiloso e discreto. Nada justifica a omissão nesses casos. Omitir-se, afinal, também é um crime grave.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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