Este espaço não comporta a abundância de fatos históricos pertinentes ao tema — em sua maioria documentados —, tampouco as suas repercussões contundentes na construção da nação brasileira. Todavia, tentaremos contextualizar minimamente o leitor acerca das relações entre Brasil e Estados Unidos ao longo das últimas décadas para evidenciar a gravidade do recente arroubo intervencionista de Donald Trump, considerando que os fenômenos políticos, quando se manifestam, resultam de transformações de tendências históricas, razão pela qual devem ser analisados em sua condicionalidade essencial.
Amado Cervo observou, certa vez, que a vocação do Brasil o impele a perseguir um modo próprio de inserção internacional. E assim tem sido desde 1930 — praticamente sem intercorrências, como falaremos adiante —, quando o Itamaraty foi elevado a órgão de Estado e a diplomacia brasileira passou a construir uma tradição sólida de rejeição a alinhamentos automáticos, intensificada sob JK por influência de San Tiago Dantas e Augusto Frederico Schmidt.
Isto é: em política externa, o Brasil deve perseguir o desenvolvimento material do seu povo por meio de trocas comerciais e intelectuais que se revelem pontualmente vantajosas, sem descartes apriorísticos e evitando ao máximo qualquer contencioso político-ideológico.
O desenvolvimento dessa doutrina, que não deixa de se amoldar aos recortes históricos em que é praticada, ancora-se nas ideias de independência nacional, autodeterminação dos povos, não intervenção e cooperação entre os povos para o progresso da humanidade — não à toa, inscritas como princípios das relações internacionais no art. 4º da Constituição de 1988. Pouco mudou a substância apesar das diferentes denominações adotadas pelos nossos governos: política externa independente, diplomacia da prosperidade, pragmatismo ecumênico e responsável, política externa ativa e altiva etc.
Tal guinada em relação ao que se viu nos primeiros anos de República deixou uma potência particularmente desgostosa: os vizinhos americanos ao norte. Moniz Bandeira ressalta que a tendência para o messianismo nacional, a ideia de povo eleito por Deus que o judaísmo legou aos puritanos, atualizou-se sob a forma de um americanismo expansionista e imperialista, que conserva o delírio de tutela de todo o continente americano em prol de seus interesses econômicos e geopolíticos (America’s Backyard).
James Monroe e Theodore Roosevelt, presidentes norte-americanos de distintas gerações, elaboraram políticas nesse sentido. Em verdade, de início, as relações entre EUA e o Império do Brasil se estabeleceram em clima de suspeita; D. Pedro I os via como foco de subversão, mandando enforcar o marinheiro americano James Rodgers por sua participação na sublevação de 1824, em Pernambuco. Mas, com a República, a coisa logo degringolou para o servilismo.
E continua custoso aos norte-americanos aceitar a perda das benesses decorrentes dessa hierarquia, motivo por que dão o bote quando têm oportunidade: Castelo Branco adotou uma tola linha de interdependência e “soberania limitada em matéria de defesa”, não demorando a ser escanteado pela linha-dura nacionalista do regime militar; e Collor promoveu a adesão incondicionada, sem contrapartidas e sem salvaguardas, ao Consenso de Washington — leia-se consenso entre o Departamento do Tesouro dos EUA e o FMI.
Não raro, nossos bons vizinhos instruem seus prepostos a condenar líderes brasileiros pela “aproximação com [determinadas] ditaduras”. É compreensível; quem sempre se afeiçoou, em busca de concessões e favores, a regimes sectários e corruptos não consegue ver nos outros senão os vícios que carrega em si mesmo.
Chega, então, a barafunda escrita por Donald Trump — erudição não é uma qualidade a que algum dia o bufão será associado. Exigência ao atual presidente da República para retirada da sobretaxação gravíssima sobre produtos brasileiros: cesse o processo criminal contra o ex-presidente e coíba o Poder Judiciário de penalizar big techs norte-americanas, a despeito de seus desmandos e de seu envenenamento de toda uma geração.
Traduzindo: viole a tripartição de Poderes — afinal, o Executivo teria de vetar que a cúpula do Judiciário brasileiro julgasse um indivíduo já denunciado pela Procuradoria-Geral da República —, endosse a acusação de parcialidade do sistema jurisdicional do seu país, deixe de zelar pelo bem-estar da sua população em benefício da atuação de empresas estrangeiras e, enfim, abdique de um dos atributos centrais da soberania nacional: o exercício do poder jurisdicional.
Soberania é a qualidade primária de existência da entidade surgida de uma associação de pessoas que se dotou de forma política, ou seja, a qualidade da existência do Estado nacional. Ela confere ao Estado o poder de se organizar juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões. Assegurar o cumprimento das leis, inclusive mediante força policial, é um atributo da soberania exercido pelo Poder Judiciário e sem o qual a própria existência do Estado deixa de fazer sentido.
Jamais houve um desafio iliberal ao exercício da jurisdição brasileira, máxime quando exercida em face de cidadãos brasileiros. O banditismo do texto não só é inaceitável, é inacreditável. Como afirmado por um periódico de São Paulo, é verdade que Trump não tem o menor respeito pelas liturgias e rituais das relações entre Estados, mas mesmo para seus padrões a carta endereçada ao governo brasileiro passou de todos os limites.
Esperar que o Judiciário de uma nação soberana, que opera com independência, deixará de processar quem quer que seja para livrar o país de retaliações econômicas não passa de devaneio arbitrário. Precisamos dizer o óbvio: se há dúvidas ou discordâncias com relação aos rumos da política externa brasileira ou a ativismos judiciais (questões absolutamente internas), cabe exclusivamente aos brasileiros ajustar os rumos que julgarem necessários ao país.
Somente por meio do processo político-democrático, com participação da sociedade civil e dos Poderes constituídos, que o Brasil permanecerá em seu processo de construção nacional e de emancipação socioeconômica, sem subordinação a interesses exógenos. Ou algum leitor receberia amistosamente retaliações econômicas chinesas e russas — ou seja, potencial destrutivo superior ao americano — devido a uma eventual retomada de processos criminais contra Lula — governante de sua predileção —, após este deixar a presidência?
Outro ponto precisa ser evidenciado: retaliação econômica caracteriza, sim, tentativa de intervenção estrangeira. Atualmente, as ingerências não são levadas a cabo apenas com boots on the ground, mas, principalmente, com a imposição de sanções econômicas.
É natural que o maior sancionador entre as nações se valha desse instrumento por ocasião de programas de desenvolvimento de armas nucleares, ou de invasões territoriais contra outros países... mas por processos criminais movidos em face de um simpatizante? Patético.
Como já demonstrado exaustivamente, são mentirosas as insinuações de desvantagens para os EUA no comércio com o Brasil — para ser melhor, só se enviássemos as coisas para lá de graça. Mas não podemos menosprezar a proximidade temporal da medida com declarações, feitas por Lula e por outros líderes, de potencial substituição do dólar como ativo em trocas comerciais pontuais.
Essa é uma contenda antiga: o Brasil sofria diversas ameaças norte-americanas nas décadas de 1970 e 1980 quando praticava permuta in natura de produtos com países do bloco soviético, como toneladas de café por toneladas de petróleo bruto, ou toneladas de arroz por maquinário industrial. Há uma óbvia pretensão dos EUA de continuar a gerir o sistema financeiro internacional, sem a participação dos países em desenvolvimento, que continuam a sofrer as consequências da decisão unilateral dos norte-americanos de romper os compromissos de Bretton Woods, substituindo o gold exchange system pelo dollar system e impondo sua própria política monetária ao sistema capitalista mundial, sem obedecer a qualquer disciplina multilateralmente acordada.
Os europeus, décadas atrás, tentaram substituir o dólar por um ativo emitido pelo FMI baseado numa cesta de moedas, mas foram deixados falando sozinhos. Enfim: se um líder majoritário brasileiro não puder simplesmente debater, com outros líderes mundiais, melhores condições de troca, é mais proveitoso que fechemos a cozinha e nos resignemos com o status de protetorado.
Não se enganem com a ofensiva liberticida: trata-se de apenas mais um episódio da empreitada de congelamento do Brasil em seu atual estágio de desenvolvimento científico e tecnológico, a pretexto de hipotéticas vantagens comparativas que nos relegariam, no sistema produtivo mundial, à função de supridoras de matérias-primas e de bens manufaturados simples, a preços aviltados. Alinhamento automático aos EUA não nos proporcionará nada, a não ser a desfiguração da nossa fisionomia nacional. Brasileiros, honrem a sua tradição diplomática e protejam a sua pátria!
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