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É promotor de justiça com atuação no Tribunal do Júri de Vitória (ES); doutor e mestre em Direito

A negação da verdade e o poder das facções criminosas no ES

Esses grupos funcionam em regime de plantão, com escala de horários e regras internas. A prova disso está em estatutos apreendidos, conversas interceptadas e relatos constantes de testemunhas. Essa hierarquia não é informal nem ocasional, é sistêmica

  • Rodrigo Monteiro É promotor de justiça com atuação no Tribunal do Júri de Vitória (ES); doutor e mestre em Direito
Publicado em 27/08/2025 às 17h00

A negação da realidade é um fenômeno perigoso. Chamamos de veritofobia o medo ou a recusa em aceitar a verdade, especialmente quando ela é incômoda. Recentemente, artigos publicados na imprensa capixaba insistiram em relativizar a existência de facções criminosas no Estado do Espírito Santo, classificando-as como “grifes” de jovens pobres ou “sucessões de gangues”.

É uma narrativa que, embora discuta questões sociais relevantes, peca por distorcer o foco e por ignorar um fato que quem está na linha de frente conhece bem: há facções criminosas, devidamente organizadas e estruturadas, que promovem diariamente um derramamento de sangue motivado pela busca desenfreada por expansão territorial que deixa comunidades inteiras reféns dessa realidade.

Para alguns articulistas, entretanto, falar em facções criminosas seria exagero, um mito ou até uma manobra de criminalização de jovens pobres. Para quem está na linha de frente, porém, essa visão não resiste ao confronto com os fatos.

O objetivo deste texto não é negar as desigualdades sociais ou o racismo estrutural, temas indispensáveis em qualquer discussão séria sobre criminalidade no Brasil. Mas é preciso separar a crítica social legítima da negação pura e simples da realidade. Ignorar a existência de facções criminosas não ajuda as comunidades; pelo contrário, fortalece quem as oprime.

Há quase vinte anos atuando como promotor de Justiça, sendo os últimos dez dedicados exclusivamente ao Tribunal do Júri, vivencio situações diárias que me colocam diariamente diante de famílias destruídas pela violência. E essa violência que causa a mortes de inocentes guarda uma vinculação de cerca de 80% com o mesmo pano de fundo: disputas territoriais entre grupos organizados para controlar a venda de drogas.

Nesses julgamentos foi possível perceber a face mais cruel de um ciclo que se repete: facções criminosas disputam territórios, financiam armas cada vez mais letais, executam rivais de forma exemplar e, não raro, atingem inocentes. É a lógica da guerra pela hegemonia, que transforma ruas em trincheiras. Não se trata de exagero: essas mortes têm assinatura, revelam planejamento, divisão de tarefas e, sobretudo, uma organização que vai muito além da ação isolada de uma gangue.

No Espírito Santo, as investigações e processos judiciais revelam a existência de grupos com estrutura funcional: patrão, gerente-geral, gerentes de bairro, vapores (vendedores), olheiros, seguranças da “boca de fumo”, coletores de valores e até laranjas para dissimular bens.

Esses grupos funcionam em regime de plantão, com escala de horários e regras internas. A prova disso está em estatutos apreendidos, conversas interceptadas e relatos constantes de testemunhas. Essa hierarquia não é informal nem ocasional, é sistêmica.

A partir da adoção de regras rígidas elencadas em estatutos internos são delineadas as obrigações e deveres dessas verdadeiras “indústrias do crime”, que buscam a expansão de territórios com o propósito único de aumentar o lucro, comprar armas e financiar novas investidas violentas.

Ônibus incendiado em Roda D'Água, em Cariacica, no final da noite de segunda-feira (25)
Ônibus incendiado em Roda D'Água, em Cariacica, no final da noite de segunda-feira (25). Crédito: Foto leitor

O que diferencia uma facção criminosa de uma quadrilha eventual é também o uso do terror como instrumento de poder. Outro traço marcante dessas facções é o uso da violência com valor simbólico. Não basta matar o inimigo; é preciso matar de modo a passar um recado. Há execuções à luz do dia, disparos feitos diante de crianças, mortes cruéis que têm como objetivo impor o medo e reforçar o domínio territorial. O homicídio, nesse contexto, é instrumento de marketing do crime.

Quem duvida disso deveria conversar com as mães que perderam filhos ou com moradores honestos que não podem exercer o direito sagrado de ir e vir.

O silêncio imposto à comunidade, a dificuldade de testemunhas colaborarem com as investigações e a sensação de que “ninguém viu nada” são sinais claros de que não estamos diante de meninos brincando de bandidos, mas de organizações que sabem o que fazem.

Quando especialistas afirmam que não há facções criminosas em nosso Estado ou que tudo não passa de “mitologia”, alimentam uma narrativa que desarma a opinião pública, esvazia políticas de segurança e dá fôlego à criminalidade.

A crítica social é necessária. O combate à desigualdade é urgente. Mas isso não autoriza a negação dos fatos. Se quisermos reduzir homicídios, proteger inocentes e reconstruir a paz em nossas cidades, precisamos olhar a verdade de frente: o Espírito Santo está no meio de uma guerra entre facções criminosas, nitidamente organizadas, violentas e letais.

E mesmo que ainda não tenham a sofisticação financeira de uma Cosa Nostra ou Yakuza, isso não as torna menos perigosas para a população. Pelo contrário, tornam-se mais letais porque agem mais próximas das pessoas, sem os filtros que possam frear a violência de seus membros. O resultado são tiroteios em plena luz do dia, crianças mortas, trabalhadores atingidos e famílias destroçadas.

Ao negar a existência dessas facções, cria-se um ambiente de complacência. Palavras têm peso. Quando especialistas em segurança pública escrevem que “não há facções criminosas” ou que elas são “entes imaginários”, transmitem ao leitor a ideia de que não há com o que se preocupar, de que os órgãos de segurança estão “combatendo fantasmas”. Discursos dessa natureza fragilizam o combate ao crime e desrespeitam as vítimas.

Reconhecer a existência das facções não significa legitimar abusos ou guerras indiscriminadas. Significa, antes de tudo, dar nome aos problemas para poder enfrentá-los com inteligência, prevenção e repressão qualificada.

O enfrentamento da criminalidade não se faz com slogans, mas com informação, inteligência e responsabilidade. Os especialistas precisam ter a consciência de que suas palavras podem influenciar políticas públicas e percepções sociais.

Negar a existência das facções criminosas, a partir dos elementos de domínio público que estão à disposição de todos, não ajuda os jovens, não protege as famílias e não fortalece as comunidades. Ajuda apenas o crime.

Nada do que foi afirmado invalida a necessidade de reformas sociais, investimentos em educação, inclusão e criação de novas oportunidades. Esses são os pilares para diminuir a criminalidade a longo prazo. Mas negar o que está diante dos olhos não ajuda ninguém. É perfeitamente possível dizer que precisamos de mais escolas e mais investigações. Que precisamos de menos desigualdade e de mais enfrentamento organizado contra o crime. Essas agendas não são excludentes, são complementares.

Aos que insistem em dizer que o Estado do Espírito Santo não tem facções criminosas, deixo uma reflexão: os números, os processos, as investigações e as mortes dizem o contrário. As famílias enlutadas, os bairros sitiados e os servidores que arriscam a vida todos os dias sabem do que estamos falando. Negar essa realidade não a faz desaparecer; só dá mais espaço para que ela cresça.

Por isso, é preciso dizer com todas as letras: negar a verdade e insistir em afirmar a inexistência de facções criminosas no Estado do Espírito Santo é, quando muito, ingenuidade; quando não, inequívoco desconhecimento e descolamento da realidade posta.

Este texto não traduz, necessariamente, a opinião de A Gazeta.

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