Jucélia Santos Ribeiro forma rede de ajuda a mulheres vítimas de violência.
Jucélia Santos Ribeiro forma rede de ajuda a mulheres vítimas de violência.
Jucileia Santos Ribeiro

"Minha luta é para meninas não passarem pelo que passei"

Depois de sofrer violência doméstica por 14 anos, Jucileia encontrou, na venda de bolos, uma saída do lar violento e hoje forma uma rede de apoio para tirar outras mulheres que passam pela mesma situação

Jucélia Santos Ribeiro forma rede de ajuda a mulheres vítimas de violência.
Vitória
Publicado em 28/05/2023 às 14h09

Após sofrer violência doméstica por 14 anos, Jucileia Santos Ribeiro, hoje com 49 anos, conseguiu, há oito anos, sair da relação abusiva, denunciar o agressor e encontrar, na venda de bolos, um caminho para recomeçar e garantir sua independência financeira. Em 2020, ela contou sua história no projeto Todas Elas, de A Gazeta, tendo conseguido, inclusive, ajuda para uma prótese dos dentes que chegou a perder em uma das agressões que sofreu. 

Depois de passar por tanta dor, sua luta continua em prol de salvar mais mulheres. Ela participa de um movimento que ajuda quem acabou de fazer denúncia da violência na delegacia e precisa de uma cesta básica, de um lugar para morar ou até sair do Espírito Santo para se proteger. Também tem feito palestras para alertar sobre o assunto, inclusive em outros Estados. 

Diante de tantos casos recentes de mulheres mortas pelos companheiros, ela faz um alerta para as mais jovens se atentarem a sinais, para que não sejam vítimas. "A minha luta maior é para que as meninas não venham a passar pelo que passei, para que ninguém tenha que dormir do lado do homem que a agrediu", diz.

Jucélia Santos Ribeiro
Jucélia Santos Ribeiro forma rede de ajuda a mulheres vítimas de violência. Crédito: Carlos Alberto Silva

O que mudou nesses últimos anos desde que você saiu do ambiente de agressão e contou a sua história?

O Todas Elas me ajudou a resgatar a minha autoestima. Depois do projeto, eu consegui colocar uma prótese dentária (Jucileia perdeu dentes devido a agressões) e também comecei a abrir um projeto que ajuda mulheres após a denúncia de violência na delegacia. Todo mundo incentiva a denunciar, mas, depois da denúncia, a mulher muitas vezes fica abandonada. Algumas delas, se não forem cuidadas igual a gente faz, voltam para o agressor. Nós pegamos essas mulheres com dependência emocional e algumas nós até mandamos embora do Estado, porque não têm condições de ficar. Ou nós ajudamos com a alimentação ou aluguel. É um movimento chamado Libertas — Mulheres que Levantam Mulheres, no qual temos várias mulheres, de gari a assessora parlamentar, que estão juntas para poderem sair dessa realidade de agressão.

Como é que vocês chegam nessas mulheres na delegacia?

Muitas que vão à delegacia vão para o Cramvive, um centro de atendimento em Vila Velha. Lá, sempre tem alguém que já passou pela mesma situação e conhece nosso trabalho e indica, por isso atendemos mais mulheres em Vila Velha. Quando  chegam, perguntamos sobre a necessidade dela. Primeiro, algumas simplesmente precisam tirar e trocar o filho da escola. Aí, vamos lá e fazemos isso por ela. Outra precisa de uma cesta básica, porque não tem como alimentar o filho e o agressor era o provedor — se ela não tiver comida, pode voltar para casa, o que é perigoso. Colocamos o alimento lá dentro, porque realmente ela corre risco de morrer se voltar. Para algumas, providenciamos passagem e mandamos para fora do Estado. Fazemos um elo de várias mulheres para tirar outra daquele ciclo de violência.

Quantas mulheres vocês já atenderam recentemente?

Estamos resguardando a vida dessa mulher, porque, muita vezes, o Estado se omite e a gente não vai deixá-las aqui para morrer. A gente consegue salvá-las e, graças a Deus, no ano passado, conseguimos atender 148 mulheres. Tem uns casos que precisamos ajudar a pagar aluguel, porque não têm para onde ir após a denúncia e muitas cidades não as acolhem. Formamos uma sociedade anônima de mulheres que se ajudam na hora do sofrimento. Porque todo mundo manda denunciar, mas depois essa mulher fica sozinha. Muitas não têm nem passagem para voltar da delegacia. Nós conseguimos também materiais para  ajudar a dar uma profissão a elas: uma começou a fazer bolo; outra, unha. Assim, começam a ter renda e não precisam voltar para o agressor.

Como é esse contato com as mulheres e o que elas costumam relatar?

No primeiro contato, elas estão decepcionadas tanto com o marido que a agrediu quanto com o Estado, que a abandonou, porque, quando ela vai fazer denúncia, não pensa no depois — que poderá, por exemplo, não ter o que comer pois o agressor a sustentava. Muitas ficam em situação difícil e até com culpa, pensando que os filhos passarão fome e se questionando onde vão morar. Então, essa mulher traz uma bagagem psicológica horrível. Ela está com fome, sem nada, e o Estado não está nem aí. No primeiro momento da mulher vítima de violência, o assistencialismo salva vidas. Uma mulher que ajudamos foi mandada de volta para a família no Maranhão, porque ela falava que iria ser morta se continuasse aqui. Fizemos vaquinha, vendemos bolos e mandamos ela e os três filhos para o Maranhão.

Você sofreu com violência doméstica por vários anos até conseguir se fortalecer e sair. Essas mulheres que você tem ajudado estão na relação por muitos anos ou elas têm conseguido se alertar com pouco tempo?

As mulheres acima dos 30 anos estão denunciando mais. Elas já vêm de muitos anos de agressão, só que agora aprenderam a denunciar. Mas essas meninas novas, de 14 e 15 anos, não acreditam na violência. Por isso, você pode ver que quem está morrendo são meninas novas, porque elas estão na ilusão de que aquilo não é violência, que a violência acontece com mulheres mais maduras. Só que elas já estão no ciclo de violência que só acaba quando esses homens forem educados. Elas não acreditam que o cara vai fazer algo com elas. A Ana Carolina (Kurth), do Centro de Vitória, por exemplo, tinha três meses que morava junto e o cara a matou. Nós temos a de Marataízes (Dara Santos), que retirou a medida protetiva e foi assassinada no meio da rua. Então, são meninas mais novas que não estão acreditando que o homem irá agredi-las. As mais velhas estão denunciando mais do que as mais novas. A questão da denúncia, a mulher não tem como esperar, porque, se já houve uma ameaça,  ela pode se concretizar a qualquer hora, sim. 

Diante disso, quais são os desafios para as mulheres estarem em uma situação melhor?

Um dos desafios é a falta de utilização efetiva da Lei Maria da Penha, especialmente a ausência de programas de reeducação para homens agressores, com grupos de formação de homens que trabalhem a desconstrução do machismo. Se não acontecer isso, o homem fica preso, sai do mesmo jeito que entrou. Ele só vai trocar de vítima. Além disso, é essencial que as mulheres se empoderem e aprendam a selecionar seus parceiros. Depois que eu saí do processo de violência, estou há seis anos sozinha e muitas pessoas questionam o motivo. Eu estou aprendendo a me conhecer porque, se eu não me valorizar, não é o outro que vai me valorizar. Mas isso foi com ajuda de tratamento psicológico. Por isso, o tratamento psicológico também é fundamental para as mulheres que saem de situações de violência. Infelizmente, muitas não têm acesso a esse suporte e acabam repetindo padrões negativos em relacionamentos futuros. Outra coisa que vejo muito na minha região é o número de violência que nós temos de homens que se dizem cristãos, mas humilham a mulher porque, dentro dos ambientes religiosos, eles pregam a submissão da mulher ao homem. 

Quais são as ações que você está desenvolvendo para ajudar as mulheres? Você ainda faz os bolos que te ajudaram a sair do ambiente de violência?

Ainda faço. Ganhei de uma fraternidade em Vitória um forno industrial para conseguir fazer uma quantidade maior. Não fazemos todo dia, porque não temos insumos para tanto. O dinheiro que a gente arrecada é dado e não tem volta. Repomos com recursos próprios. Faço uma venda mensal para pagar aluguel de uma delas até ela receber o Bolsa Família. Eu tenho meu benefício, então não preciso desse bolo para viver, mas outra mulher precisa, então a renda é dela.

Me conta sobre a sobre a sua nova rotina de palestras.

Eu fiz uma palestra em Tubarão (Vale) no dia 8 de março, sobre a violência e o empoderamento da mulher e fiz uma para mulheres evangélicas no Rio de Janeiro. Lá, tem a Secretaria de Políticas Públicas para a Mulher e falamos para mulheres evangélicas, porque no Rio também cresceu a violência. Fomos alertar que, no primeiro sinal de violência, elas têm que comunicar alguma liderança ou denunciar. Elas não podem chegar ao patamar de serem assassinadas. As mulheres estão sendo dizimadas e estão achando que isso está dentro de uma normalidade.

Como você se sente, tendo passado por sua história de superação, ter saído da situação de violência, por poder ajudar outras mulheres agora?

Eu estou me sentindo livre e útil. Livre porque hoje eu não preciso ter medo de horários para poder voltar para casa. E útil porque eu estou fazendo aquilo que eu gostaria que tivessem feito por mim. Enquanto houver uma mulher sofrendo, nenhuma de nós vai estar bem. A minha luta maior é para que as meninas não venham passar pelo que eu passei, para que ninguém tenha que dormir do lado do homem que a agrediu.

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