> >
Livro revela impactos da violência doméstica no desenvolvimento de crianças e adolescentes

Livro revela impactos da violência doméstica no desenvolvimento de crianças e adolescentes

Obra “Onde estão os filhos da violência?”, lançada na última segunda-feira (29) em Vitória, mostra como políticas públicas ajudam a combater abusos e acolher vítimas

Ana Muniz

Residente em Jornalismo / [email protected]

Publicado em 3 de outubro de 2025 às 12:13

“Educação vem de casa”, é isso que diz a expressão popular. Mas como é o desenvolvimento de um indivíduo que cresce em um lar violento? Essa é a realidade de milhares de crianças e adolescentes no Brasil. Segundo o Atlas da Violência 2025, 605.976 jovens brasileiros de até 19 anos sofreram com violência doméstica entre 2013 e 2023.

É para essas vítimas que se volta o livro “Onde estão os filhos da violência?”, lançado na Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales), na última segunda-feira (29). A obra foi escrita pela juíza Hermínia Azoury, a psicóloga Ana Paula Vieira Fraga e a pedagoga Karla Lopes da Silva. Com uma abordagem multidisciplinar, as autoras analisam os impactos da violência doméstica, especialmente para a população infantojuvenil. Por meio de estudos e pesquisas, elas revelam que os jovens são impactados tanto como vítimas diretas de abusos em casa quanto como testemunhas de agressões entre adultos.

Lançamento de “Onde estão os filhos da violência?” reuniu autoridades do Judiciário, Legislativo, Executivo, sociedade civil e entidades internacionais.
Lançamento de “Onde estão os filhos da violência?” reuniu autoridades do Judiciário, Legislativo, Executivo, sociedade civil e entidades internacionais. Crédito: Divulgação

O livro mostra como crianças e adolescentes, durante muito tempo, foram invisibilizados enquanto cidadãos. Esse cenário só começou a mudar com a Constituição Federal de 1988, que reconheceu esses indivíduos como sujeitos de direitos. Em 1990, com a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), reforçou o dever do Estado para a proteção da população infantojuvenil.

Mesmo com os avanços, a obra destaca que Brasil ainda carece de uma rede protetora para jovens que convivem com a violência no lar. “Eles são muito vulneráveis. O adulto às vezes toma decisões, mas a criança e o adolescente não têm como tomar decisões sozinhos”, reforça Hermínia, que dirige a Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Comvides).

Filhos também são vítimas da violência conjugal

O livro  evidencia que, durante décadas, os estudos e políticas públicas em torno da violência doméstica eram voltados apenas para adultos — sobretudo mulheres, que são a mais afetadas. No entanto, a obra revela que crianças e adolescentes que habitam lares violentos também são vítimas.

As autoras apontam que as consequências da convivência com os abusos listados incluem distúrbios comportamentais, transtornos psicológicos e reações fisiológicas derivadas de traumas. Mesmo quando as agressões são praticadas apenas entre cônjuges, os filhos são impactados direta ou indiretamente.

Identificar a violência conjugal como um problema que acarreta efeitos prejudiciais ao desenvolvimento infantil permitiu abrir os olhos dos mais variados profissionais (da educação, da saúde, do acompanhamento socioeducativo, etc.) sobre as crianças que eles recebem de forma corriqueira e apresentam inúmeros problemas de desenvolvimento de aprendizagem, de saúde…

Hermínia Azoury, Ana Paula Vieira Fraga e Karla Lopes da Silva

Trecho do livro "Onde estão os filhos da violência?" (página 126)
A violência contra a mulher atinge diretamente outras vítimas invisíveis: os filhos das mulheres assassinadas pelos companheiros ou ex. Essas crianças muitas vezes presenciam a mãe sendo morta. Os traumas atingem níveis profundos.

Comportamentos agressivos são passados de pais para filhos

Além de prejudicar o bem-estar das crianças e dos adolescentes, a violência nos lares contribui para a reprodução e perpetuação de comportamentos violentos ao longo das gerações, conforme explicita o livro. As autoras chamam isso de “aprendizagem social da violência no núcleo familiar”.

Segundo a obra, menores que vivenciam essas circunstâncias naturalizam as violências como formas de interação social, por isso, muitas dessas crianças e adolescentes reproduzem os abusos quando se tornam pais e mães. 

Sendo assim, esse círculo nunca vai ter um futuro promissor. Ele sempre volta à estaca zero

Hermínia Azoury

juíza de Direito

Pesquisas nacionais e internacionais citadas no livro também indicam que jovens expostos à violência no lar tendem a se envolver com a delinquência juvenil. Hermínia afirma que percebeu essa realidade quando estava na 1ª Vara Especializada da Infância e Juventude e se deparou com uma grande quantidade de menores em conflito com a lei. Na ocasião, fez uma pesquisa com mães, avós e responsáveis que acompanhavam os jovens.

“No término das sessões, chamava ao meu gabinete para saber se elas eram vítimas de violência doméstica e, para o meu espanto, 85% estavam nessa situação. Percebi o inevitável: aqueles menores infratores eram oriundos de lares violentos, tóxicos”, relata Hermínia.

Hermínia Azoury é um dos nomes por trás de políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica no ES, como o Juizado Itinerante da Lei Maria da Penha.
Hermínia Azoury é um dos nomes por trás de políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica no ES, como o Juizado Itinerante da Lei Maria da Penha. Crédito: Divulgação

Escola é essencial no acolhimento

“Onde estão os filhos da violência?” defende que a educação, para contribuir na luta contra a violência doméstica, deve passar valores como equidade e justiça, assim como romper com estereótipos de gênero que reforçam dinâmicas de dominação. De acordo com o livro, essas reflexões devem estar no currículo escolar desde a educação infantil até o ensino médio.

Para a coautora e pedagoga Karla Lopes da Silva, o papel da escola vai além da educação: ela é um ambiente privilegiado para identificar e acolher vítimas. “Sob a perspectiva pedagógica, esses jovens podem apresentar dificuldade de concentração, queda no rendimento escolar, evasão, desmotivação e comportamentos de agressividade ou retraimento.”

Karla também defende a necessidade de existirem projetos voltados a crianças e adolescentes para abordar temas como a violência doméstica e investigar possíveis abusos. “A escola e os espaços de convivência comunitária são fundamentais para identificar esses sinais, oferecer acolhimento e promover estratégias de suporte em parceria com famílias e profissionais da saúde e da justiça.”

Este conteúdo foi escrito por um aluno do 28º Curso de Residência em Jornalismo da Rede Gazeta, sob supervisão de Mikaella Campos.

  • Viu algum erro?
  • Fale com a redação

Tópicos Relacionados

Violência Livros Lançamento Infância Adolescência

A Gazeta integra o

The Trust Project
Saiba mais