Inês Veltri e a filha Maria Victória, de 14 anos, lutaram pelo direito de a jovem poder usar bermuda na escola
Inês Veltri e a filha Maria Victória, de 14 anos, lutaram pelo direito de a jovem poder usar bermuda na escola. Crédito: Carlos Alberto Silva

A luta de mães e meninas pelo direito de usar bermuda em escolas do ES

Obrigadas a vestirem calças, mesmo em dias quentes, alunas ganham o apoio das famílias em busca do direito de vestir roupas mais leves no ambiente escolar, como já é permitido aos meninos

Tempo de leitura: 7min
Vitória
Publicado em 31/07/2022 às 13h40

Em uma sociedade com desigualdade de gênero, mulheres sempre precisaram lutar para terem os mesmos direitos que homens, por mais básicos que sejam. Ao longo da história, elas já tiveram de brigar pela autorização de votar, pelo direito de estudar, para poder se divorciar, para praticar futebol, para se inserir na política e mesmo para que a Constituição Federal reconhecesse que mulheres devem ter direitos iguais aos homens.

Agora, na terceira década do Século 21, após tantas conquistas, as mulheres se veem diante de uma luta, que envolve a liberdade de se vestir: o direito de usar bermuda nas escolas, assim como é permitido aos meninos. Isso porque algumas instituições privadas e municipais da Grande Vitória estão obrigando alunas a usarem calças. O argumento apresentado aos pais das estudantes é que a mudança no padrão dos uniformes seria uma forma de protegê-las de casos de assédio.

Por trás dessa proibição, há o mito de que uma “roupa decente” evita o assédio. Mas estatísticas demonstram que não importa como se vestem: mulheres nos mais variados ambientes e usando diferentes tipos de roupas sofrem assédio, cotidianamente. Dessa forma, não bastaria proibir uma mulher de vestir short ou bermuda para evitar o assédio.

Ainda assim, o regimento de uma escola particular de Vitória optou por estabelecer um novo padrão de uniforme para as alunas este ano: short saia, corsário, calça bailarina e calça tactel para aquelas que estão até o 5º ano; e calças tactel ou brim, a partir do 6º ano. Exigência que não se estendeu para os alunos, liberados a continuar usando bermudas.

Situação que incomodou uma advogada de 40 anos. Sem querer ser identificada, ela reclamou com a direção da escola pelo fato de suas três filhas não poderem usar bermuda no início do ano letivo, durante o verão, com temperaturas acima dos 30 graus Celsius em Vitória.

“O uso de máscaras obrigatório e as altas temperaturas nos meses de fevereiro e março motivaram pais e mães a se organizarem e procurarem a direção da escola sobre essa questão do uniforme feminino não ser compatível com o calor e não haver uma opção como o masculino, que prevê bermuda e calça de tactel. Havia uma bermuda de helanca feminina, mas somente para a educação física. As meninas tinham que trocar e depois voltar a usar a calça”, contou a mãe.

A advogada conta que, em uma reunião com os responsáveis pelos estudantes e o trio gestor da escola, foi exposto o problema. A escola teria, então, informado que a bermuda não seria apropriada para prática de esportes e que não seria possível haver um uniforme neutro para ambos os sexos - liberar a bermuda masculina para as meninas também usarem - porque isso implicaria em  questões políticas - a direção não teria abordado quais.

No entanto, os pais seguiram na luta e tentaram entrar em consenso sobre a melhor maneira de ter um uniforme mais igualitário para ambos os gêneros.

“Foi, então, proposta a calça corsário, que já existe como uniforme e tem praticamente o mesmo comprimento da bermuda masculina, próximo aos joelhos. Essa solução atendeu todos os presentes na reunião. Ficou também aberta a possibilidade de desenvolver futuramente uma bermuda de brim feminina, parecida com a calça de brim. Hoje as meninas aderiram essa calça corsário para os dias quentes”, relata a advogada.

Em outra escola particular, também proibidas de usar bermuda, muitas alunas desenvolveram alergias, incomodadas com o calor durante o último verão.

“Entrei em contato com o diretor para conversar, mas não foi atendida. Então, me passaram para a supervisora, que disse que as meninas podiam usar bermudas. Ao chegar à loja para comprar, porém, fui informada que a escola não tinha bermuda como uniforme feminino, apenas masculino. Nós, mães de alunas, nos juntamos porque entendemos que as meninas têm que ser respeitadas também”, contou a servidora da Justiça Maria Inês Veltri Costa, de 53 anos.

Maria Inês conta que, após se manifestarem a favor de bermudas para meninas, alguns pais mudaram de posição. "Alguns disseram que seria absurdo permitir que as meninas usassem bermuda, porque os meninos prestariam mais atenção às pernas das meninas do que às aulas. Não se preocuparam em educar seus filhos e ensiná-los a respeitar o direito de a menina poder usar bermuda”, comentou a servidora.

LUTA POR DIREITOS IGUAIS

Foi então que, durante uma aula, foi exibido aos alunos um filme sobre a história do movimento das sufragistas, que lutaram pelos votos da mulher no Reino Unido, como conta Maria Inês.

Maria Inês Veltri Costa

Servidora da Justiça

"Assisti com minha filha e aquilo nos deixou mais revoltada. Teve uma reunião na escola com alunos e diretoria e, ao final, fiz a minha observação. Pedi que fizessem uma comparação da história do filme com a atualidade. Comentei que minha filha disse que até hoje nós, mulheres, precisamos lutar pelos nossos direitos. A partir disso, conversamos sobre as melhores opção de bermudas. O mais difícil, como mãe e mulher, é que um lugar de ensino, onde poderíamos preparar um jovem a saber respeitar os direitos da menina, tenha esse preconceito e nos obrigue a brigar para conseguir o uso de uma bermuda pelas alunas"

REUNIÃO PARA PEDIR UNIFORMES MAIS LEVES PARA AS ALUNAS

Enquanto algumas mães comemoram a conquista do direito ao uso de bermudas pelas alunas, outras ainda estão buscando algum resultado com as escolas.

Uma jovem, de 25 anos, mãe de aluna do ensino fundamental de uma escola da rede de Vitória, contou que, ao pedir roupas mais confortáveis para as meninas, ouviu de gestores que as estudantes poderiam substituir a parte de baixo por uma calça jeans.

“Não é a bermuda o problema nem para meninos nem para meninas. É a falta de respeito que assola as pessoas. E sempre colocam a mulher, até mesmo na escola, como objeto”, destacou a mãe.

Ela relatou que uma reunião está marcada para depois do fim das férias de julho e discutirá, novamente, sobre o uso de bermudas pelas alunas. Ela espera que a escola mude de ideia.

Em nota, a Secretaria Municipal de Educação de Vitória (Seme) informa que não houve alteração nos kits de uniforme escolar. Para o ensino fundamental, os estudantes recebem camiseta de manga curta, camiseta regata unissex, bermuda colegial masculina para os meninos e bermuda colegial feminina para as meninas, que têm ainda uma opção de saia, se desejarem. "Caso a estudante não esteja com a bermuda de uniforme, não é permitido o uso de short curto ou legging na escola. A recomendação é usar uma calça", disse a Seme, por nota. 

PAIS PODEM RECORRER À JUSTIÇA CASO NÃO HAJA ACORDO COM A ESCOLA

De acordo com o Ministério Público do Espírito Santo (MPES), caso as mães, pais ou responsáveis não consigam resolver esse tipo de situação no âmbito particular, podem fazer a denúncia ao órgão, por meio do telefone 127, da [email protected] ou diretamente nas Promotorias de Justiça.

O MPES disse que já recebeu denúncias desse tipo, mas a resolução sempre se deu de forma mediada, não havendo necessidade de ajuizamento de ação.

Nágila Zardini, advogada criminalista, que faz parte do grupo União de Advogadas contra Violência Sexual, explica que a prática de adotar vestimentas diferentes para meninos e meninas contribui para o machismo estrutural, que nada mais é do que a cultura de normalizar em diversos aspectos sociais o favorecimento do homem em detrimento à mulher.

“Esse tipo de conduta da escola, além de fortalecer o machismo estrutural da sociedade, corrobora com a ideia de que a culpa de sofrer um crime sexual é da mulher, devido à forma como ela se porta ou da roupa que veste”, disse a advogada.

Segundo Nágila, a melhor forma de combater a situação de assédio no âmbito escolar é através de campanha de conscientização, mostrando para os meninos que a roupa que uma mulher usa não justifica a prática de nenhuma conduta criminosa, bem como ressaltando para as meninas que elas podem se vestir da forma como se sintam bem, que isso não vai torná-las alvos de crimes sexuais.

“O ideal para os pais que não concordarem com a imposição de que suas filhas devem obrigatoriamente usar calça é fazer contato com a direção da escola, informar que não concordam com a imposição e que autorizam suas filhas a usarem outro tipo de uniforme. Caso não haja acordo com a escola, esses pais podem recorrer ao Poder Judiciário."

De acordo com a advogada familiarista Nicolli Dutra Bessa Correia, o Estatuto da Criança e do Adolescente, nos artigos 15 e 17, respectivamente, estabelece que a criança e o adolescente têm direito à dignidade e ao respeito como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis e que o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, das ideias e das crenças, dos espaços e objetos pessoais.

“Assim, cabe aos pais que não apoiam a medida adotada pela escola procurar a direção para requerer que a decisão seja revista. Em caso de recusa, cabe a eles acionarem os órgãos responsáveis para apurarem o caso e adotarem medidas mais urgentes. A escola, depois da família, é o local adequado para ensinar, aprender e debater tais assuntos, de modo a promover a empatia e respeito.”

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