*Bianca Martins
Como devemos proteger as crianças das notícias dos últimos dias: das tragédias, da violência, das mortes? Será que é melhor não tocar no assunto?
A resposta para sua pergunta é bem simples: não devemos proteger ninguém da vida. Ela é assim, um mosaico de acontecimentos. Alguns felizes, outros tristes, perturbadores, devastadores... Françoise Dolto, uma das pioneiras no cuidado das emoções de crianças muito pequenas, disse a seguinte frase em sua entrevista para as páginas amarelas da Revista Veja no ano de 1979, na oportunidade em que veio ao Brasil para uma conferência: "A criança sabe tudo!". Na semana passada uma criança que atendo leu essa frase (a revista fica aberta no meu consultório como um lembrete para mim) e me disse rindo: Essa notícia é verdadeira. Eu sei tudo.
Sim, "é verdade esse bilete". A criança sabe! A criança é naturalmente curiosa, ela sorve e absorve o ambiente em que vive por todos os seus poros, por todos os seus orifícios. E mesmo aparentemente desatenta, ela escuta absolutamente tudo. Sente no ar as tensões, as emoções de quem está a sua volta. Ela necessita de palavras para entender o ambiente, para traduzi-lo, para aceitá-lo e para sobreviver física e emocionalmente a ele. E é o seu "próximo apaziguador" (pais e cuidadores), como definiu Freud, que deve oferecer essas palavras norteadoras para esses afetos e emoções apreendidos.
Tenho uma criança em casa e, diariamente, como o texto de Dolto adverte, ela me mostra o quanto sabe, mesmo quando não sabe a extensão e a gravidade. Mas anseia saber. E o saber passa pela nomeação.
Os eventos das últimas semanas, o desastre na cidade de Brumadinho, o incêndio que ceifou vidas de adolescentes no "ninho" do Urubu, as chuvas que desabrigam e matam, a queda do helicóptero que provocou a morte do jornalista Ricardo Boechat e do piloto, as violências do cotidiano são acontecimentos que impactam de maneira dramática as vidas de muitas famílias e de muitas crianças.
Nós, expectadores desses acontecimentos, lidamos de maneira distanciada com as notícias. Mas as crianças estão na sala, ouvindo a TV, observando como reagimos e, principalmente, aprendendo a lidar com elas.
Não falar sobre o que acontece é uma forma perversa de furtar a humanidade das crianças. Não falar, não lembrar, não expressar a emoção que emerge, não protege as crianças; protege somente os adultos, pois ter que lidar com as frustrações, as perdas, a consciência de finitude é ter que encarar a nossa impotência.
Recalcar que a vida é tênue, que nossos atos e nossas emoções nos pertencem, não favorece a elaboração das perdas e frustrações que sofremos diariamente. Não nos ajuda nos enfrentamentos dos lutos. É necessário ensinar às crianças a atravessarem seus processos de perdas, de frustrações; nomear o que está acontecendo, ensiná-las sobre causas e efeitos, os impactos e extensões de fatores externos e de seus atos.
Ouvir suas perguntas, respondê-las na medida do que for possível, acolhê-las em suas emoções, auxiliá-las nos ritos de despedida, a buscar ajuda quando não conseguirem lidar com as próprias limitações, promover um espaço de diálogo. Considerá-las gente e ensinar-lhes a "humanizar" a vida.
Meus mais profundos e solidários sentimentos às famílias das vítimas de Brumadinho, dos jovens jogadores de futebol, do valente jornalista Ricardo Boechat e do piloto do helicóptero, Ronaldo Quattrucci, aos desabrigados pelas chuvas, às vidas ceifadas pela violência, pela ausência de cuidado por parte do Estado, por nossas negligências cotidianas.
*É psicóloga, especialista e mestre pela Unifesp/EPM; psicanalista membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória e Diretora da Clínica Infans
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